quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Discussão sobre filiação socioafetiva

Muito comum nos dias atuais enveredar-se a filiação por esse caráter socioafetivo. Verifica-se que o reconhecimento da filiação socioafetiva, a manifestação quanto à vontade do pai ou da mãe de serem reconhecidos juridicamente como tais deve estar comprovada. 

Porém, é muito comum esse tipo de relação se perpetrar, quantos de nós não consideramos uma pessoa como sendo da família, como se irmão fosse, alguns pais ou avós que não temos mais. Somos “adotados” por essa família e pertencemos a ela.

Assim, estamos diante de uma situação de fato que deve, como tal, ser provada por qualquer meio legítimo de prova, quando de seu reconhecimento.

Essas circunstâncias são mais conhecidas do cotidiano jurídico. Mas e quando estamos diante de uma ação declaratória de maternidade de uma “adoção à brasileira”, em uma relação homoafetiva entre duas mulheres, quando somente uma detinha o caráter registral, junto com seu companheiro. O que seria necessário para a extensão da filiação?

Em caso similar recente, o Superior Tribunal de Justiça determinou a anulação de uma sentença que julgou antecipadamente uma ação declaratória de maternidade, sem produção de provas.

Essa matéria veiculada no STJ foi interessante, pois o colegiado seguiu o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, que reconheceu a ocorrência de cerceamento de defesa e determinou o retorno dos autos à primeira instância, de modo a viabilizar a instrução probatória.

“A robustez da prova, na hipótese dos autos, há de ser ainda mais contundente”, afirmou o relator, ao observar que o pretendido reconhecimento de filiação socioafetiva refere-se a pessoa já falecida. “De todo modo”, disse ele, “não se pode subtrair da parte a oportunidade de comprovar suas alegações”.

Perceba que a autora afirmou que foi criada pelas duas, reconhecendo-as como suas mães, indistintamente. A situação durou até 1982, ocasião em que a segunda mulher casou-se com um homem com quem já namorava havia cerca de três anos. Em 1988, o casal adotou uma outra menina.

De acordo com a autora, apesar do rompimento da relação entre as duas mulheres, ela permaneceu sendo tratada como filha por aquela que não a registrou. Com o falecimento da mãe registral, ela passou a morar com sua outra mãe, o marido desta e sua irmã adotiva, situação que perdurou até seu próprio casamento.

Com o falecimento da segunda mãe, em 2007, a autora afirma que foi abandonada pelo “pai” para que não participasse da partilha dos bens. Por isso, ajuizou a ação declaratória de maternidade combinada com pedido de herança.

Em primeira instância, o pedido não foi acolhido. O juízo considerou que o reconhecimento da maternidade socioafetiva somente teria cabimento se houvesse abandono afetivo por parte da mãe registral, fosse ela biológica ou adotiva, circunstância que, segundo ele, não se verificou no caso.

Deixou registrado, ainda, que a relação estabelecida entre a pretensa filha e as pessoas com quem viveu não tem o poder de estabelecer vínculo de filiação, principalmente porque a pretensa mãe socioafetiva constituiu posteriormente outra família. 

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) manteve integralmente a sentença, mas por fundamento diverso. Segundo o tribunal, não ficou demonstrado que a apontada mãe socioafetiva teve, de fato, a pretensão de adotar a menina em conjunto com a mãe registral. Para o TJMT, as duas não formavam um casal homossexual, tal como foi sugerido.

No recurso ao STJ, a pretensa filha alegou cerceamento de defesa no julgamento antecipado do processo. Sustentou a nulidade da decisão do tribunal estadual por ausência de fundamentação suficiente. Disse que o TJMT não discutiu se a ocorrência de abandono afetivo pela mãe registral seria mesmo imprescindível para o reconhecimento da maternidade socioafetiva, notadamente na hipótese dos autos – em que as mães, segundo ela, formavam um casal homoafetivo.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio Bellizze afirmou que a corte estadual analisou todas as questões que lhe foram submetidas, apresentando fundamentação suficiente, segundo sua convicção.

Entretanto, o ministro constatou que houve cerceamento de defesa porque o juízo considerou que a pretensa filha não comprovou a intenção da pretensa mãe em adotá-la, mas não lhe deu a oportunidade de produzir provas nesse sentido e julgou a ação improcedente.

“O tribunal de origem, ao julgar o recurso de apelação, bem identificou a importância do aspecto sob comento, qual seja, a verificação da intenção da pretensa mãe de se ver reconhecida juridicamente como tal. Não obstante, olvidando-se que a sentença havia sido prolatada em julgamento antecipado, a corte local manteve a improcedência da ação, justamente porque o referido requisito não restou demonstrado nos autos. Tal proceder encerra, inequivocamente, cerceamento de defesa”, concluiu Bellizze.

O ministro também reconheceu a possibilidade jurídica do pedido acerca da dupla maternidade, conforme já afirmado pelo STJ em 2010, no julgamento de recurso relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão.

“Efetivamente, em atenção às novas estruturas familiares baseadas no princípio da afetividade jurídica, a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental, compreendida como expressão da realidade social, não pode passar despercebida pelo direito”, destacou o relator. 

Assim, fica aqui nossa menção, de que a busca por uma multiplicidade paternal é possível, mas deve ser vista com restrições por uma prova robusta, para que não seja somente uma busca de direito patrimonial (herança), em vez de se ter a afetividade como norte maior.

Fonte: STJ - O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial


Professor Tutor Adriano César da Silva Álvares

segunda-feira, 13 de outubro de 2014



Atividade agrícola e Atividade Rural

Com a finalidade de auxiliar e instrumentalizar o estudioso nos estudos das atividades urbanas e rurais, bem como sobre os tipos de aproveitamento do solo, esse breve texto tem como objetivo distinguir atividade agrária de atividade rural, bem como delimitar suas principais características.

A terminologia agrário e rural, para muitos autores, se confunde (PROENÇA, 1999, p. 18). No entanto, a doutrina mais moderna vem defendendo que atividade rural não equivale à atividade agrária.

A atividade agrária não necessariamente está relacionada à exploração do solo em suas potencialidades naturais, logo, não se confunde atividade agrária com atividade rural.

Nas palavras de Gustavo Rezek, estudioso já consagrado no Direito Agrário, a atividade agrária é:


“atividade humana de cultivo de vegetais e de criação de animais, caracterizada pela presença de um processo orgânico de desenvolvimento desses vegetais e animais, sujeito às leis naturais – e, portanto, não totalmente controlado pelo homem – cujos produtos, sendo coisas, são destinados ao consumo social em sentido amplo, ou seja, não somente ao consumo alimentar”(...) “Será agrária, em nosso entender, a criação de cavalos [...] e a criação de ratos cobaia”. (REZEK, p. 29-30).

Note-se que atividades agrárias podem ocorrer em áreas urbanizadas. Criação de pequenos animais para fins científicos, produção de vegetais hidropônicos, apiário e outras atividades agrárias podem ser desenvolvidas em área urbana. Trata-se de atividades agrárias que não dependem de exploração rústica do solo, podendo ocorrer, portanto, em áreas urbanas.

Ele prossegue ademais que algumas atividades que implicam no aproveitamento rústico do solo, não são agrárias: “O extrativismo vegetal e animal – a caça, a pesca a coleta de frutas – não pode ser considerado em sentido ato agrário. Muito mais flagrante á a exclusão de atividade de mineração, na qual inexiste sequer o ciclo agrobiológico” (REZEK, p.31e 32).

Embora seja importante ressalvar discussões doutrinárias a respeito do tema, o conceito de atividade agrária de Gustavo Rezek tem sido amplamente aceito para os estudos de Direito Agrário.

Diferentemente, outra finalidade e portanto outro conceito recebe a expressão atividade rural. Ela está relacionada à exploração rústica do solo, ao uso e fruição das potencialidades naturais (MENDONÇA LIMA. 1997, p. 173 e CERRILLO, F. & MENDIETA, p17). A doutrina traça a definição de atividade rural com fundamento especialmente nos incisos I, artigo 4º, do Estatuto da Terra e da Lei 9.629/93.

Fernando Sodero ensina: “a expressão ‘atividade rural’ compreende, além da posse e uso da terra, a sua exploração em qualquer das várias modalidades, quer agrícola, quer pecuária, agroindustrial ou extrativa” (SODERO, p. 33). Favorino Mércio, por sua vez, definiu no artigo 4º do seu projeto de Código Rural que “a vida rural compreende a cultura dos campos em todas as suas manifestações, a saber: a pecuária, a agricultura, e todas as indústrias rurais” (MENDONÇA LIMA, p.17). Veja que há atividades rurais que extrapolam a noção de atividade agrária.

José Afonso da Silva, numa perspectiva finalística, assinala que os terrenos em seu estado natural, são voltados à produção das chamadas riquezas naturais (SILVA, p. 83), sendo que essas atividades seriam rurais.

Dorgival Terceiro Neto acresce que a atividade rural é aquela que busca a exploração rústica com um fim primordialmente econômico, assinalando que o simples plantio amador, o gosto pela terra, a satisfação de plantar, como ocorre comumente em sítios, não configuram a própria atividade rural (TERCEIRO NETO, p.18).

As demais atividades que servem ou potencializam a própria exploração rústica do solo, como construção de moradia para os trabalhadores, construção de terreiros, galpões, coxos, etc (PINTO, p.299 ), embora não sejam propriamente exploração do solo, são atividades rurais visto que inexistiriam se não fosse para tal fim. Vicente Chermont de Miranda é claro nesse sentido:

a função do agricultor não se exaure na exclusiva produção do fruto direto, mas se integra com todas aquelas formas de atividades que têm a sua base no fundo rural e que constituem o objeto e o conteúdo da indústria agrária. E isso, tanto do ponto de vista das leis especiais que têm procurado regular o assunto, como do aspecto econômico. No exercício de sua atividade, o agricultor não pode se limitar apenas à exploração agrícola, à produção de frutos diretos, de vez que tem de realizar uma série de outras operações no intuito de aperfeiçoar a sua produção a fim de torná-la mais lucrativa. Desta forma, o aproveitamento do fundo agrícola, em sua maior amplitude, obriga o agricultor à prática da natureza agrícola, mas se destinam na realidade, a tornar possível aquele desfrute pleno do fundo agrário (MIRANDA, p. 89).

Essencialmente, o aproveitamento rústico do solo é que configura a atividade rural (ESCRIBANO COLLADO. P 183).

Pode-se verificar que atividade rural refere-se à exploração rústica do solo com finalidade econômica. Como exemplo de atividade rural, pode-se citar o cultivo, a criação de gado, o extrativismo mineral, o extrativismo animal, o extrativismo vegetal e as atividades exercidas no solo que auxiliam, potencializam ou viabilizam sua exploração.

Note-se, por fim, que: a) nem toda atividade agrária se dá em solo rural. Ela pode ocorrer em solo urbano; b) nem todo atividade rural é agrária. Há atividades rurais que não se enquadram no conceito de atividade agrária; c) as atividades rurais estão relacionadas à exploração rústica do solo. Surge a pergunta se é possível realizar exploração rústica do solo em áreas urbanas. A resposta não é simples e exigiria outros estudos.

Bibliografia


CERRILLO, F. & MENDIETA, L. Derecho agrário. Barcelona: Bosch, 1952.

COLLADO, Escribano. La propriedad privada urbana. Madrid: Montecorvo, 1979.

MENDONÇA LIMA. Rafael Augusto de. Direito agrário. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

MIRANDA, Vicente Chermont de. Agriculura. Repertório enciclopédico do direito brasileiro. SANTOS, J. M. Carvalho (org.) Rio de Janeiro: Editora Borsoi, Volume 3.

PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel agrário. Curitiba: Juruá, 2007

SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

SODERO. Fernando Pereira, Curso de direito agrário – O Estatuto da Terra. Brasília: Fundação Petrônio Portela, 1982.

TERCEIRO NETO, Dorgival. Noções preliminares de direito agrário. 2ª ed. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1985.


Professor tutor Ronaldo Gerd Seifert

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: AVANÇO OU RETROCESSO?

Em época de renovação do Parlamento, muitas propostas são trazidas a baila na tentativa assustadora de convencer o eleitorado que este ou aquele candidato tem melhores condições de trabalhar em benefício das pessoas.

Uma das bandeiras levantadas nesta época, dentre tantos assuntos polêmicos, é a que cuida da redução da maioridade penal.

Frequentemente os meios de comunicação noticiam crimes gravíssimos cometidos por adolescentes em conflito com a lei, sujeitos à aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Esta lei, por sua vez, descreve as medidas socioeducativas a que fica sujeito o adolescente que comete tais fatos, variando de advertência para infrações pequenas até a mais grave delas, que é a internação (art. 112, da Lei n. 8069/90).

O legislador trouxe no bojo da sobredita lei que a internação, enquanto medida mais gravosa à condição do adolescente, fica adstrita às hipóteses em que o ato é cometido com emprego de violência ou grave ameaça contra a pessoa, ou então quando há reiteração na conduta infracional de natureza grave ou quando houver o descumprimento reiterado de medida anteriormente imposta.

Não se pode olvidar que a internação, tal qual ocorre com a prisão, constituem modalidade excepcional, porquanto a liberdade do agente deve ser a regra. Assim, definir que é a natureza do delito quem vai estabelecer se há efetivamente necessidade de internação é de fato, temerário.

Administrar a redução da maioridade com base nos altos índices de violência urbana que diariamente são constatados, sem perscrutar as causas (sociais, emocionais, econômicas, familiares) que concorrem para o cometimento do crime significará, num futuro não tão distante, a superlotação de unidades prisionais e o transbordamento de processos em varas criminais.

O envolvimento de adolescentes em atos infracionais ocorre porque alguma etapa anterior na formação desta pessoa em desenvolvimento foi suprimida. Diante da ausência de políticas eficazes, da falta de investimento público em educação, lazer e infraestrutura, reduzir a maioridade terá o mesmo efeito que cuidar de uma infecção com analgésico.


Professora Tutora Tatiana Andrade