Existem algumas
decisões proferidas pelas Cortes Supremas que nos permitem parar um pouco para
refletir sobre a própria função do Poder Judiciário no Estado Democrático de
Direito. Um exemplo disso ocorreu na mais famosa decisão da Suprema Corte
Americana no caso Marbury vs.Madison, que representou uma mudança na
concepção do princípio da Separação de Poderes, criando o gérmen da do Controle
de Constitucionalidade dos Atos Legislativos.
As suspensões de
segurança e tutela antecipada concedidas pela Ministra Ellen Gracie em 2007,
embora não tenham a repercussão histórica da mencionada decisão da Suprema
Corte dos Estados Unidos, exigem uma reflexão sobre o próprio papel do
magistrado na sociedade democrática. Sem embargo, nas mencionadas decisões, a
Ministra, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, reconheceu que o
fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo para pacientes com câncer pode
representar uma violação ao artigo 196 da Constituição da República, uma vez que
o aludido dispositivo refere-se “à efetivação de políticas públicas que
alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e
igualitário, e não a situações
individualizadas”.
Argumenta, portanto,
a nobre Ministra que o fornecimento de medicamentos de alto custo poderia
comprometer as políticas públicas na área da saúde, eis que acarretaria um
problema de “ingovernabilidade”, entendida esta como “a incapacidade de um
governo ou de uma estrutura de poder formular e de tomar decisões no momento
oportuno, sob a forma de programas econômicos, políticas públicas e planos
administrativos (...)”(FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia
Globalizada. São Paulo: Malheiros, p. 118-119), representando uma violação
ao próprio princípio da igualdade.
Cabe, no entanto, a
seguinte pergunta: como deve decidir o Judiciário no embate entre os direitos
individuais e a governabilidade? Sem delongas e reconhecendo que a pergunta não
é de fácil resposta, gostaria apenas de esboçar uma solução para o problema
colocado.
Para tanto,
utilizo-me da doutrina de Ronald DWORKIN, seja pela sua importância teórica
para o debate jurídico e político contemporâneo, seja por
representar uma visão
do Poder Judiciário, apreendido em sua essência. Ao comentar a importância
teórica e política da decisão da Suprema Corte Americana no caso Marbury vs
Madison, DWORKIN constata que o órgão de cúpula do Poder Judiciário tem, de
fato, natureza política e, nesse sentido, suas decisões envolvem o
debate sobre questões substantivas, e não meramente formais. Todavia, a
racionalidade envolvida nessas deliberações deve basear-se no que ele denomina
de “argumentos de princípio”, ou seja, “o Tribunal deve tomar decisões (...)
sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não
decisões sobre se promove melhor o bem-estar geral”.(DWORKIN, Ronald. Uma
Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, p. 101).
Para DWORKIN, o Judiciário
é o grande fórum para a discussão dos direitos individuais: é o locus apropriado
para que os conflitos que surgem entre o individuo e a sociedade sejam
decididos, não com base em argumentos econômicos, mas sim valorativamente,
buscando-se a concretização da Justiça.
As decisões da
Ministra Ellen Gracie estão eivadas, portanto, em sua própria
essência, já que não
espelham a melhor interpretação dos valores constitucionais envolvidos na
questão do fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo para pacientes
com câncer: a Ministra permitiu que alguns indivíduos fossem sacrificados em
nome da racionalidade econômica.
Professor
Turor Marcos Paulo Falcone Patullo