quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

INDAGAÇÕES ACERCA DA TRANSMISSÃO AO DOMÍNIO PÚBLICO DE IMÓVEIS RENUNCIADOS

INDAGAÇÕES ACERCA DA TRANSMISSÃO AO DOMÍNIO PÚBLICO DE IMÓVEIS RENUNCIADOS

Como tratado no título, esse pequeno texto busca levantar questões, sem, contudo, respondê-las. Se, ao final, forem levantadas relevantes perguntas, serão cumpridos os objetivos aqui propostos.

Embora possa parecer incomum, muitos imóveis são abandonados e renunciados pelo proprietário. Trazer tais imóveis urbanos para o domínio estatal é de interesse público, para cumprimento de função social da propriedade, funções da cidade e para atendimento de princípios do Direito Urbanístico.

Conforme se nota no artigo 1.275 do Código Civil, dentre as formas de perda da propriedade estão a renúncia e o abandono. Em seguida, no artigo 1.276,  o Código Civil trata expressamente sobre a forma de o Estado se assenhorar gratuitamente dos imóveis abandonados. No entanto, não reserva dispositivo semelhante para os imóveis renunciados. Surge, então, a primeira e principal indagação: poderia o Município trazer à sua propriedade imóveis urbanos renunciados de forma não onerosa?

Certo é que as normas de transmissão de propriedade são de Direito Civil, cuja competência legislativa é privativa da União. Uma resposta pronta é que a simples ausência de norma expressa de Direito Civil implica na impossibilidade de o Município trazer gratuitamente ao seu patrimônio imóveis urbanos que foram objeto de renúncia. É evidente que ao final das reflexões essa poderia ser a conclusão, mas há algumas considerações que precisam ser investigadas e consideradas antes de tal conclusão.

Para desenvolver o raciocínio, é oportuno traçar alguns breves conceitos e características da renúncia de imóveis. A renúncia é negócio jurídico unilateral em que o renunciante abre mão do seu direito. Deve ser interpretada restritivamente (artigo 114 Código Civil), não podendo se presumir ou permitir efeitos mais amplos que o previsto no próprio ato de renúncia. A renúncia de imóveis deve ser feita por escritura pública caso o valor do bem ultrapasse trinta salários mínimos (artigo 1.080 Código Civil) e deve ser registrado junto ao Oficial de Registro de Imóveis (artigo 1.275, parágrafo único, Código Civil), o que lhe traz oponibilidade erga omnes. Feito o registro, o imóvel passa a ser "res nullius", ou seja, coisa de ninguém e, como característico de renúncias, é ato que não pode ser revogado.

            O abandono guarda semelhanças com a renúncia. Assim como a renúncia, o abandono é ato unilateral. Saliente-se serem as únicas formas de o proprietário unilateralmente perder a sua propriedade. O abandono decorre de conduta tácita ou expressa. Quando expressa, o abandono se dá por meio que não atende a forma prescrita para a renúncia. A principal diferença entre a renúncia e o abandono é o fato de que o abandono é revogável e a renúncia irrevogável. 

“Mutatis mutandis, tanto o abandono quanto a renúncia representam forma de se dispor unilateralmente do direito de propriedade. O abandono tem caráter precário e pode ser revogado. A renúncia, por outro lado, é definitiva. O bem é renunciado, na prática, equivale a um abandono definitivo, com efeitos erga omnes. Quer-se destacar aqui que os atos materiais do abandono são sempre verificados na renúncia.

“Como quer que seja, não se pode conceber renúncia da propriedade imóvel sem o abandono dessa mesma propriedade. O abandono, pode-se dizer, é o elemento material da renúncia, cujo elemento volitivo, subjetivo, assenta na manifestação da vontade expressa no ato renunciativo. Dá- se o abandono puro e simples, quando esse acontecimento ocorre sem o ato preliminar da renúncia” (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos registos públicos. vol. VI. 4ª Ed. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1961  p. 185).

Embora sejam institutos diferentes, a renúncia sempre implica ao renunciante a prática da típica conduta de abandono. Dessa situação, surgem os questionamentos:

Se o abandono de imóvel, que pode ser revogado, permite assenhoramento do Estado sobre o bem, não poderia a renúncia, irrevogável, autorizar o assenhoramento do imóvel pelo Estado?

Por uma interpretação teleológica e sistemática, seria possível se defender que a transmissão de imóvel renunciado está regulado no Código Civil de forma não expressa?

Seria possível defender que o artigo 1276 do Código Civil seria, “mutatis mutandis”, aplicado a imóveis objeto de renúncia, afastando-se o período de arrecadação em razão da “irrenunciabilidade”?

Enfim, encerramos esse breve e singelo texto com sua pergunta principal: poderia o Município trazer à sua propriedade imóveis urbanos renunciados de forma não onerosa?

RONALDO GERD SEIFERT
Professor tutor da LFG-Uniderp. Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Pós-graduação em Direito Contratual pela Cogeae PUC-SP. Graduado em Direito pela PUC-Campinas. Advogado