terça-feira, 27 de junho de 2017

Prazo da licença-adotante deve ser obrigatoriamente o mesmo da licença-maternidade.

Prazo da licença-adotante deve ser obrigatoriamente o mesmo da licença-maternidade.


A CF/88 garante às mulheres que tiverem filho uma licença remunerada para que possam durante um tempo se dedicar exclusivamente à criança. Isso é chamado de licença-maternidade (ou licença à gestante) e está previsto no art. 7º, XVIII, da CF/88:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;
Esta licença-maternidade é assegurada também às servidoras públicas. O art. 39, § 3º, da CF/88 afirma que a licença-maternidade é garantida também às servidoras públicas.
O prazo da licença-maternidade, em regra, é de 120 dias, nos termos do art. 7º, XVIII, da CF/88. Vale ressaltar, no entanto, que, em 2008, o Governo, com o objetivo de ampliar o prazo da licença-maternidade, editou a Lei nº 11.770/2008 por meio de um programa chamado "Empresa Cidadã".
Este programa prevê que a pessoa jurídica que possua uma empregada que tenha um filho (a) poderá conceder a ela uma licença-maternidade não de 120, mas sim de 180 dias. Em outras palavras, a CF/88 fala que o prazo mínimo é de 120 dias, mas a empresa pode conceder 180 dias.

Se a mulher, em vez de dar à luz uma criança, resolver adotar um filho, ela também terá direito à licença-maternidade. A mãe que adota ou que obtém a guarda judicial da criança para fins de adoção também possui direito à licença-maternidade. A licença-maternidade, no caso de adoção, é chamada de licença-adotante.

Qual é o prazo da licença-maternidade em caso de adoção? Em outras palavras, qual é o prazo da licença-adotante? É o mesmo que na hipótese de parto?
Na CLT: SIM. O tema, para os trabalhadores em geral, está previsto no art. 392-A da CLT. Segundo este dispositivo, a empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança terá direito a licença-maternidade no mesmo prazo da empregada que der à luz um filho. Em outras palavras, para a CLT não há qualquer distinção.

Na Lei nº 8.112/90: NÃO. A Lei dos Servidores Públicos da União, por outro lado, faz diferença entre os dois casos e traz uma regra pior para a mãe que adota uma criança.
De acordo com o art. 210 da Lei nº 8.112/90, a servidora pública que adotar ou obtiver guarda judicial de criança terá licença conforme os seguintes prazos:
• 90 dias, no caso de adoção ou guarda judicial de criança com até 1 ano de idade;
• 30 dias, no caso de adoção ou guarda judicial de criança com mais de 1 ano de idade.

Essa previsão do art. 210 da Lei nº 8.112/90 não é constitucional.

Os prazos da licença-adotante não podem ser inferiores ao prazo da licença-gestante, o mesmo valendo para as respectivas prorrogações. Em relação à licença adotante, não é possível fixar prazos diversos em função da idade da criança adotada.
STF. Plenário. RE 778889/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 10/3/2016 (repercussão geral) (Info 817).

Não existe fundamento constitucional para tratar de forma desigual à mãe gestante e da mãe adotante, assim como não há razão para diferenciar o adotado mais velho do mais novo.
Desse modo, se a Lei prevê o prazo de 120 dias de licença-gestante, com prorrogação de mais 60 dias, tal prazo (inclusive com a prorrogação) deverá ser garantido à mulher que adota uma criança (não importando a idade).

Referência
http://www.dizerodireito.com.br/2016/04/prazo-da-licenca-adotante-deve-ser.html

JULINE CHIMENEZ ZANETTI
Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora tutora da Pós-graduação de Ciências Penais e Direito Constitucional da Universidade Anhanguera-LFG. Advogada.




quarta-feira, 14 de junho de 2017

A hostilidade no meio ambiente de trabalho

A hostilidade no meio ambiente de trabalho

Michelle C B Teixeira Pittman*
A violência é poder de destruição, desencadeadora de uma energia devastadora, capaz de produzir perturbações traumáticas, ou até mesmo fatais.
Pequenos atos perversos são tão corriqueiros que parecem normais.
A violência perversa só percebe quem a sofre. O ataque destrói diretamente a saúde mental do indivíduo, que é fundamental na construção de sua individualidade, e do reconhecimento de seu empenho no trabalho bem desenvolvido, no ambiente laboral.
O fenômeno da violência no trabalho tem chamado a atenção de várias áreas do conhecimento científico, como por exemplo médicos e psicólogos, de modo a refletir sobre os fenômenos provenientes do universo do trabalho, dentre eles o assédio moral[1].
Algumas ações destacam-se por configurarem violência no trabalho, e que não necessariamente se restringem a ações de natureza física, podendo citar: assediar, isolar, enviar mensagens ofensivas, excluir, gesticular rudemente, ameaçar, sabotar, intimidar, danificar, oprimir, gritar, xingar, constranger, dentre outras[2].
As agressões nem sempre são humilhantes ou constrangedoras se tomadas isoladamente, ou seja, fora de sua contextualização. Neste sentido ressalta Valérie Malaba que “poderão caracterizar atos de assédio as decisões normais nas relações de trabalho, mas que em razão de seu contexto, de suas circunstâncias, de seu modo de execução ou de sua repetição tendam a degenerar as condições de trabalho”[3].
Pierre Bourdieu denominou como violência simbólica as relações de dominação, sem o uso da coerção física, aplicadas em relações entre pessoas e grupos pertencentes à uma sociedade[4].
A ligação entre meio ambiente e direito a dignidade, revela a busca do homem de viver em um ambiente não degradado, o qual garanta seus direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são direitos históricos, consagrados ao longo do tempo. Nesse sentido afirma Bobbio[5]:

Os direitos fundamentais são direitos históricos. Isso significa que a consagração dos mesmos não se deu de uma vez só, porém fez parte da luta humana na afirmação de si em face do poder social, em especial o institucionalizado e politicamente organizado (o Estado).

O respeito ao meio ambiente do trabalho é o mesmo que respeitar a saúde e segurança do trabalhador. Caso contrário o princípio da dignidade humana não encontra expressão. Uma vez que o trabalhador não é uma coisa, mero fator de produção que aliena a sua força de trabalho ao capital. Este é um ser mundano, detentor de subjetividade, e deve ser respeitado como indivíduo, sujeito de direito à integridade física e mental no local laboral com extensão a todo âmbito em que vive.
A transformação da ordem econômica resultada pela Revolução Industrial colocou o homem como objeto de exploração. E mesmo após a Segunda Guerra Mundial com o advento da Declaração dos Direitos Humanos, o objetivo de conferir maior valor ao ser humano, ainda está longe de ser alcançado em sua ideação[6].
 Ignorar a dignidade humana do trabalhador é incorrer em afronta do artigo 1ª, incisos III e IV, da Constituição Federal no Brasil de 1988[7].
O artigo 225, caput, do mesmo instituto trata do meio ambiente, onde estabelece direitos ao meio ambiente de trabalho digno e equilibrado[8]. 
Dignidade esta que não é valorável ou substituível. Não tem preço. Desta forma, inconcebível é qualquer justificativa ou argumentação que desonere o agressor, ao tornar ou permitir que sua vítima seja alijada do meio ambiente de trabalho através do assédio moral.
É a combinação caótica de diferentes riscos visíveis ou invisíveis no ambiente e nas condições de trabalho que levam os trabalhadores a adoecer, a pedir afastamento do ambiente de trabalho e a desistir da própria vida[9].
Uma vez aplicado os princípios e direitos básicos previstos em nossa Carta Magna ao direito ambiental nas relações de trabalho, especialmente ao que se refere a proteção da saúde física e mental do trabalhador, alcança-se a dignidade da pessoa humana, respeitando à saúde e segurança do trabalhador, sem desperdício do potencial humano.







* Mestre em Direito, pela Escola Paulista de Direito. Advogada. Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Itu. Especialista nas áreas do Direito Público, com MBA em Gestão Educacional. Graduanda em Psicologia. Atualmente é Professora nos Cursos de Pós-Graduação Centro Universitário Anhanguera/ Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Tutora em EaD na Universidade Federal de São Paulo - Núcleo (UDED). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, e também em ensino superior presencial e na modalidade EaD há 10 anos.
[1] GARCIA. I. S.; TOLFO, S. DA R. Assédio moral no trabalho: culpa e vergonha pela humilhação social. Curitiba: Juruá, 2011, p. 32.
[2] SOARES, Leandro Q. Interações socioprofissionais e assédio moral no trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2008, p. 31.
[3] MALABAT, Valérie. À la recherche du sens du droit pénal du harcèlement. In: Droit Social, n. 5, maio 2003, p. 496.
[4] BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalinas. Rio de Janeiro: Beltrand, 2001, p. 47.
[5] BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. 8 ed. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.5.
[6] OLIVEIRA, Antonio Carlos Paula de. Revista pessoal de empregado: exercício, limite, abuso. São Paulo: LTr, 2011, p. 46.
[7] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...].
[8] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[9] BARRETO, M.; FREITAS, M. E de.; HELOANI, R. Assédio moral no trabalho. São Paulo: Cengage Learning Produções Ltda, 2008, p.69.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O que se entende por quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro)?

O que se entende por quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro)?

JOSÉ CARLOS TRINCA ZANETTI
Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Puc/Minas. Professor tutor da Pós-graduação de Ciências Penais e Criminologia da Universidade Anhanguera-LFG. Advogado.
http://lattes.cnpq.br/8675605889471596

A expressão “Síndrome de Dom Casmurro” faz referência à obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, na qual Bento de Albuquerque Santiago (Bentinho) narra sua história de amor com Capitu e o ciúme que advém desse relacionamento, em virtude das dúvidas quanto à eventual traição de sua esposa com seu melhor amigo (Escobar). 
Em 1900, a literatura de Machado de Assis já nos contava um romance que talvez seja um dos mais ilustrativos exemplos de que se pode valer o Processo Penal para pensar o chamado quadro mental paranoico decorrente da busca pela prova que confirme a hipótese psicológica inicial. (...) será tomada a história de Dom Casmurro como ponto de partida à reflexão.
O exemplo é ótimo, afinal, a história de Bentinho, é a história de um bacharel em Direito, mergulhado numa trama psicológica em que cada fato observado serve para contaminar a sua subjetividade e confirmar uma hipótese previamente inscrita em si: a traição de Capitu. Atordoado por várias circunstâncias, Bentinho era uma criança fechada em si mesma, razão pela qual foi apelidado de Dom Casmurro. Com o passar dos anos, desistiu da vida interna no seminário para se entregar ao amor que sentia por Capitu, filha de seus vizinhos. Dedicou-se ao estudo, se formou em Direito, casou com a mulher que se apaixonara e teve um filho chamado Ezequiel. Cúmplice de sua felicidade, esteve sempre ao seu lado um grande amigo, de nome Escobar, companheiro desde a época do seminário.
Foi no enterro de Escobar, recém-falecido, que o sentimento de Bentinho ganhou força. A contemplação de Capitu ao cadáver lhe pareceu estranha, intensa demais. O ciúme aumentou e com ele o quadro mental paranoico. Ao que lhe parece, seu filho, Ezequiel estava tomando a feição de Escobar. Pensa em matar mulher e filho, mas não tem coragem. Agora nada importa, a ideia tomou parte de sua estrutura psicológica, a hipótese passou a ter primazia sobre os fatos. Tudo faz sentido a cada folha de sua história pessoal. Pois aí está: o adultério é o “crime” eleito como hipótese por Dom Casmurro. Talvez exista um lastro que dê alguma coerência a este pensamento ou não. Provas evidentes, não há, ainda. Mas há o desejo de descobrir este mistério. Aquele que deve se convencer é o mesmo que sai atrás deste convencimento. Não sabe que provas serão achadas, ou se achará mesmo alguma coisa. Sabe apenas que tem uma hipótese: a traição de Capitu, ou então, para o que olharia? Que caminho tomaria como fundamento ao seu pensamento? Um dos mais finos romances da literatura brasileira traduz o conto da busca pela prova que confirmasse a hipótese central. Mas, afinal, houve ou não traição? Eis aqui a inapreensão do conceito material de verdade e toda a angústia da finalidade retrospectiva do processo, conforme trabalhado. Nunca chegaremos nem próximo ao fato histórico imputado à Capitu. Esta sentença não foi escrita por Machado de Assis e, portanto, não foi proferida pelo seu julgador: Dom Casmurro. Mas nem precisava. Saber se houve ou não a traição de Capitu não importa em nada, absolutamente. A hipótese já foi tomada como decisão por Bentinho, desde o início do livro. Este é o ponto: a verdade construída por Bentinho (MELCHIOR, 2012, p. 153-154). 
Assim, a terminologia -  quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro) – foi criada para designar o juiz que, dotado de poderes investigatórios, primeiro decide e depois sai à procura de material probatório para alicerçar e justificar sua decisão. 
Ao proceder ao recolhimento da prova, o magistrado antecipa a formação do juízo quanto à solução do litígio, pois, assumindo a iniciativa probatória, saberá o que almeja encontrar, gerando uma tendência que o desproverá da indispensável imparcialidade para apreciar os elementos carreados aos autos, comprometendo a estrutura dialética do processo. Nesse contexto, o magistrado passa a desenvolver quadros mentais paranoicos, pois, primeiro, define-se a hipótese (decide) e, depois, procuram-se os fatos (provas) que legitimem a decisão já tomada.
 Aury Lopes Jr. preconiza:  Atribuir poderes instrutórios a um juiz – em qualquer fase – é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal democrático.
No mesmo sentido, encontram-se as lições de Cleber Masson e Vinícius Marçal:   Exatamente em razão do sistema processual acusatório – que cuidou de separar de maneira bem nítida as funções de acusar, defender e julgar –, não deve o magistrado ter uma participação ativa na primeira fase da persecutio criminis, de maneira a indicar pelo caminho pelo qual a investigação deve seguir. Nesse cenário, poderia o juiz começar a realizar os chamados quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro), em franco prejuízo do investigado (MARÇAL; MASSON, 2015, p. 94). 
Referências

Biffe Junior, João. Concursos públicos: terminologias e teorias inusitadas. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. São Paulo: Método, 2015.


MELCHIOR, Antonio Pedro. Gestão da prova e o lugar do discurso do julgador – o sintoma político do processo penal democrático. Rio de Janeiro: 2012. Disponível em: <http://portal.estacio.br/media/4120373/antonio%20pedro%202011.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2015.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

A ORIGEM DO CONTROLE JUDICIAL DIFUSO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

A ORIGEM DO CONTROLE JUDICIAL DIFUSO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Professor Tutor Mateus Pieroni Santini
Mestre em direito do estado pela pontifícia universidade católica de são paulo (puc-sp). especialista em direito público. Professor-tutor da pós-graduação de direito da rede lfg/anhanguera. professor universitário e advogado, com experiência em direito público municipal. Colaborador do livro “dicas para concurso público”, da editora saraiva.
http://lattes.cnpq.br/9545207433473130
A primeira Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891 e é por meio dela que se inaugura a 2ª fase da fiscalização de constitucionalidade brasileira, com a introdução do controle judicial difuso.
Em apertada síntese, a Constituição Republicana do Brasil de 1891 adotou a forma federativa de Estado, formada pela união perpétua e indissolúvel de suas antigas Províncias, que passa a constituir-se em Estados Unidos do Brasil. Opta, ademais, pelo regime presidencialista. Suprime, de mais a mais, o Poder Moderador defendido por Benjamin Constant e passa a adotar a tradicional tripartição dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Cumpre ressaltar, por fim, a existência de duas ordens constitucionais no Estado brasileiro de 1891, uma, a central, representada pela União e regida pela Constituição Federal, sendo o Supremo Tribunal Federal o seu guardião maior, e outra, as estaduais[1] [2], plasmadas nas Constituições dos respectivos Estados.   
Não é difícil perceber, à vista das opções do Constituinte acima narradas, que a Constituição de 1891 recebeu o influxo das ideologias presentes na Constituição norte-americana. Não por outra razão que a inspiração do modelo de controle de constitucionalidade veio do modelo do judicial review norte-americano (“difuso-incidental”)[3]. É verdade que alguns fatores dificultavam a implementação do protótipo norte-americano de controle no Brasil. Em primeiro lugar, os Estados Unidos optaram pelo sistema inglês da “common law”, já o Brasil mantinha fiel ao modelo romano-germânico. Além disso, enquanto a República Federativa do Brasil surgiu a partir da desagregação do Estado Unitário (federalismo por desagregação ou federalismo, os Estados Unidos da América percorreram caminho inverso para a sua formação, já que se originaram, como federação, da agregação de Estados preexistentes (federalismo centrípeto). Some-se a isso o fato da República conservar alguns resquícios da prática do regime monárquico, mantendo juízes do Supremo. Por tais aspectos é possível identificar a indignação e a resistência de alguns em aceitar o controle judicial de constitucionalidade, já que a Constituição de 1824, como vimos, não entregava tal mister ao Judiciário. Mesmo após a Constituição de 1891, dúvidas e desconfianças existiam quanto ao aparecimento e utilização do instituto.  Porém, o esforço de Ruy Barbosa parece ter sido decisivo para a execução e consagração do modelo difuso. Tanto que, citando Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Clèmerson Merlin Clève (1995, p.66) destaca que “princípio, não obstante os claros preceitos referidos, houve por parte do Poder Judiciário, dúvida quanto ao exercício de relevante atribuição, e timidez na sua utilização, em aceitando-a. Isso só se tornou pacífico, após os trabalhos de Ruy, ao mostrar, à concludência, o alcance dos seus dispositivos, em reconhecendo essa prerrogativa do Poder Judiciário”.
A propósito, Ruy Barbosa, em sua obra “Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal”, sustentava que

O único lance da Constituição americana, onde se estriba ilativamente o juízo, que lhe atribui essa intenção,é o do art. III, seç. 2ª, cujo teor reza assim: ‘O poder judiciário estender-se-á a todas as causas, de direito e equidade, que nasceram desta Constituição, ou das leis dos Estados Unidos.
Não se diz que os tribunais sentenciarão sobre a validade, ou invalidade, das leis. Apenas se estatui que conhecerão das causas regidas pela Constituição, como conformes ou contrárias a ela.
Muito mais concludente é a Constituição brasileira. (apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p.1.035)

De fato, Ruy tinha razão. Dois são os dispositivos paradigmáticos[4]. Nos termos da redação do art. 60, “a” da Constituição competia aos Juízes ou Tribunais Federais processar e julgar as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição federal. Já o artigo 59, §1º, “a” dispunha que das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal  quando se questionar a validade, ou aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela.
E assim se consolidava o sistema de controle difuso-incidental de constitucionalidade em detrimento do modelo concentrado. 
Logo, as justiças da União e as justiças dos Estados desfrutavam de igual competência para examinar a validade das leis perante a Constituição. O que a Carta Política apenas estabelecia era a possibilidade de se insurgir, pela via recursal, contra a decisão do tribunal do Estado que declarava a inconstitucionalidade das leis federais, levando o caso ao Supremo Tribunal Federal. Mas o certo é que a todos os juízes e tribunais se concedia o direito de apreciar a constitucionalidade das leis da União, bastando apenas observar a competência da justiça federal e da estadual.
De mais a mais, tanto o autor quanto o réu poderiam suscitar a inconstitucionalidade como incidente no processo.[5]
A decisão, por sua vez, proferida operava-se “inter partes” e “ex tunc”. Vale dizer, a sentença que declarava a inconstitucionalidade do ato atacava-o na sua origem para pronunciar a sua nulidade e torná-lo sem efeito. Por outro lado, a declaração de inconstitucionalidade restringia-se às partes litigantes, e, por isso, o juiz e o tribunal só deixavam de aplicar a lei ao caso concreto envolvendo as partes. Não havia a possibilidade de terceiros estranhos ao processo serem contemplados com a decisão de inconstitucionalidade.  Mesmo o “decisum” prolatado pelo Supremo Tribunal Federal (órgão de cúpula do Poder Judiciário) era dotado dos mesmos efeitos. Nesse particular, o modelo adotado à época pelo Brasil apresentava graves deficiências, porque não se previa um eficiente mecanismo de uniformização das decisões, como estatuído pelo princípio do “stare decisis” do sistema norte-americano, tradicionalmente atrelado ao common law.  Com isso, corria-se o sério risco de existirem decisões conflitantes entre os diversos órgãos pertencentes aos quadros do Poder Judiciário. Isso porque, como os efeitos só se operam “inter partes”, é bem possível que um determinado juiz entenda ser inconstitucional a lei impugnada e outro juiz a conceba como constitucional. Ou seja, o sistema judicial difuso de controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de 1891 possibilita a existência de leis inconstitucionais para uns e constitucionais para outros, em um contexto de verdadeira insegurança jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processo ADI 514/PI, Rel. Min. Celso Mello. Informativo STF. Brasília, n. 499, 28 mar. 2008.
CAMPOS, G. Bidart. El derecho de la constituición y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar, 1995.  
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002.
GARCIA, Maria. Arguição de descumprimento: direito do cidadão. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 32, p.99-106, 2000.
GOMES, Joaquim Barbosa. Evolução do controle de constitucionalidade de tipo francês. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 40, n. 158, pp. 97-125, abr./jun. 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 






[1] Nos termos do artigo 63 da Constituição de 1891, tem-se: “Art. 63 - Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar respeitados os princípios constitucionais da União.” (BRASIL, 1891)
[2] Sobre o controle de constitucionalidade no plano dos Estados federados da Constituição de 1891, averba Anna Cândida da Cunha Ferraz: “A Constituição de 1891 não se referia ao sistema de defesa das constituições estaduais, matéria que, pela interpretação dada ao artigo 63, base da autonomia dos Estados, deveria ser solucionada no âmbito interno de cada ente federativo. Estes usaram amplamente tal competência. Assim, as constituições estaduais, de modo geral, criaram sistemas de defesa próprios, de natureza política, de controle direto incidindo sobre as leis estaduais e sobre as resoluções e atos das municipalidades, e estruturaram-no livremente, sem obediência a qualquer modelo prefixado, ainda que se assemelham-se entre si. Não raro este controle político coexistia com o sistema de controle jurisdicional pelo método difuso, quando em jogo direitos subjetivos individuais (isto por decorrência lógica do princípio da supremacia da Constituição Federal). Algumas Constituições previam uma espécie de jurisdição concentrada, como ocorria com a Constituição do Rio Grande do Sul, de 14.07.1891, art. 52, §5º, que atribuía competência ao Superior Tribunal de Justiça para julgar causas propostas pelo Governo do Estado, fundadas em disposição da Constituição do Estado. [...] A Constituição de Santa Catarina atribuía à Assembléia Legislativa competência para fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como anular as resoluções dos Conselhos e os actos dos prefeitos municipaes, quando contrários à Constituição Estadual (cf. artigos 21, IX e XXIII e 70, I); [...]. A Constituição do Estado de São Paulo, de 14 de julho de 1891, estabelecia em seus artigos 20, item 12, 54 e 55, respectivamente, que competia ao Congresso Estadual ‘fazer leis, suspendê-las, interpretá-las e revogá-las e anular as resoluções e atos da municipalidade, quando contrários à Constituição Estadual e à Constituição Federal e que o Presidente do Estado poderia, na ocorrência dos casos precedentes, no intervalo das sessões legislativas, ‘suspender a execução de tais atos’.” (FERRAZ, 2009, p.139-140)
[3] O controle judicial de constitucionalidade já se revelava desde a Constituição Provisória de 22 de junho de 1890 (Decreto n. 510, art. 58, §1º, alínea “b”) e no Decreto n. 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal (art. 9º, parágrafo único, alíneas “a” a “c”). Sobre tal aspecto, no entanto, Lenio Streck (2004, p.425) discorre que: “Embora a idéia de controle de constitucionalidade já estivesse estampada na exposição de motivos do Decreto n. 848, sob nítida inspiração no judicial review norte-americano, somente com a Constituição de 1891 a tese republicana ganha forma e estrutura, a partir da designação de um órgão de cúpula do Poder Judiciário que seria encarregado de realizar esse controle. Por isso é possível afirmar que a teoria constitucional brasileira nasce com a República e a Constituição de 1891. Sua interpretação clássica fundamenta-se na obra de Rui: pensamento que analisa a problemática política a partir do Direito, considerando que da existência de uma Constituição liberal democrática dependeria a legitimidade e a estabilidade das instituições.” 
[4] A reforma constitucional de 1926 deu nova redação à alínea “a” do §1º do art. 59, tornando induvidoso o controle judicial de constitucionalidade.
[5] Cumpre ressaltar que a Constituição de 1891 trouxe em seu artigo 72, §22 (“Dar-se-á o habeas corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”) o habeas corpus como genuíno instrumento ao exercício do controle de constitucionalidade de atos do Poder Público, contrários aos diretos individuais.  

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Alteração de Gênero sem cirurgia - Vantagens e problemas

Alteração de Gênero sem cirurgia - Vantagens e problemas


O STJ reconheceu ser possível a mudança de gênero (sexo) judicialmente independentemente da realização de cirurgia de adequação sexual. 

Nesses casos, a averbação deve ser realizada no assentamento de nascimento original com a indicação da determinação judicial, proibida a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão “transexual”, do sexo biológico ou dos motivos das modificações registrais. Esse registro é sigiloso e somente por ordem judicial pode ser reproduzida a certidão com a essa averbação

O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatoria do Ministro Salomão, ao acolher pedido de modificação de prenome e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher. Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico. 

No pedido de retificação de registro, a autora afirmou que, apesar de não ter se submetido à operação de transgenitalização, realizou intervenções hormonais e cirúrgicas para adequar sua aparência física à realidade psíquica, o que gerou dissonância evidente entre sua imagem e os dados constantes do assentamento civil. 

O problema reside não nesse momento inicial, mas no final da vida civil. Quando do óbito, como será expedida a certidão? O registro civil, poderá efetuar o lançamento com eventual divergência?
Outra questão relevante é que, hodiernamente, essas pessoas são vítimas de homicídios graves, com adulteração de seus corpos para impossibilitar o reconhecimento e a autoria do delito. Nesses casos há uma central de óbitos de desconhecidos, que somam mais de 58 mil casos (vide https://www.registrocivil.org.br/). Nessa linha, quando do óbito, havendo a verificação pelo médico legal, o que ficará consignado será o gênero existente sem cirurgia. Se houvesse a cirurgia, existiriam indícios que constariam do laudo do IML, o que poderia ajudar na identificação do corpo.

Faço aqui esses apontamentos, pois a inexistência de um cadastro dessas possibilidades, pode alijar as vítimas de terem um enterro digno ou a verificação de seus familiares de algum transtorno junto ao registro civil, pela divergência constante na Declaração de Óbito e o registro daquele indivíduo, quando do efetivo registro do óbito.

São questões a serem pensadas e discutidas, para evitarmos outros transtornos, que estão sendo mitigados sobre o argumento louvável da felicidade e dignidade humana.


Fonte: STJ

ADRIANO CÉSAR DA SILVA ÁLVARES
Mestrado em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui pós-graduações em Direito Contratual e Empresarial e graduado em Direito. Tem experiência na área de Direito, como advogado e professor, com ênfase em Direito Privado, atuando principalmente em Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e Direito Internacional. Coordenador do curso de Direito na Universidade Bandeirante Anhanguera unidade Vila Mariana (2012/2014). Professor na pós-graduação da UniAnhanguera e Tutor da pós-graduação da LFG/Uniderp.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

BREVES APONTAMENTOS A RESPEITO DA HIPOTECA JUDICIÁRIA E O REGISTRO DE IMÓVEIS

BREVES APONTAMENTOS A RESPEITO DA HIPOTECA JUDICIÁRIA E O REGISTRO DE IMÓVEIS

Doutrinariamente mencionado como exemplo dos efeitos anexos a sentença, a hipoteca judiciária não é um instituto novo no sistema processual. Ela representa, para o credor, a constituição de uma garantia patrimonial sobre o bem imóvel do devedor.

Uma das importâncias diz respeito sobre a constituição da hipoteca judiciária para o fim de se evitar futura fraude a execução, uma vez que a legislação processual em vigor preconiza que a citada fraude será conhecida se os atos estiverem consignados na matrícula do imóvel (CPC art. 792, III).

Por se tratar de hipoteca (garantia real), antes de serem analisados os aspectos processuais, vale consignar que o seu conteúdo de direito material deve estar em consonância com o Código Civil (como por exemplo artigos 165, parágrafo único; 289; 303; 346, II; 959; 1387, parágrafo único; 1419; 1420; 1440; 1473 ao 1488 e 1492 ao 1498, dentre vários outros).

Isto nos implica concluir que existirão limitações de direito material na hipoteca judiciária, pelo simples fato de ser uma hipoteca, como a exemplo a não possibilidade de sua instituição em imóvel que seja bem de família.

O Código de Processo Civil em seu artigo 495 determina que esta garantia poderá ser constituída quando a sentença “condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro”, bem como quando a sentença “determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária”.

Ademais, ainda que (1) a condenação seja genérica, (2) que o credor possa promover o cumprimento provisório da sentença ou que esteja pendente arresto sobre bem do devedor, (3) e que a decisão tenha sido impugnada por recurso com efeito suspensivo, a constituição da hipoteca judiciária será possível.

Embora as hipóteses acima possam trazer certa angústia ao devedor, certo é que o legislador se preocupou com eventual reforma da condenação, por isso, instituiu a responsabilidade objetiva para a reparação dos danos que o devedor venha sofrer (CPC art. 495, §5º).

Para a sua constituição não se faz necessário qualquer mandado judicial para tal finalidade, bastando o requerimento do credor com a cópia da sentença para o respectivo registro, no Registro de Imóveis. O que se denota é que, conforme dispõe o Código de Processo Civil, que em todos os bens do devedor será instituída a garantia, motivo pelo qual na sentença (por ser desnecessário o mandado judicial) não será obrigatório constar qualquer referência sobre o bem (ou bens). Neste sentido vale lembrar os artigos 222 e 2223 da LRP (pois não serão aplicáveis).
  
Como condição de eficácia (embora tal não esteja expresso na legislação processual, ficando aqui o primeiro convite para a reflexão) deverá o credor, em 15 dias, comunicar o Magistrado a respeito do registro da hipoteca em apreço. Uma vez comunicado, o Magistrado determinará a intimação da parte contrária para ciência e manifestação.

Uma vez constituída, o credor terá o direito de sequela, bem como o direito de preferência para o recebimento de seu crédito, observada a prioridade registral.

Neste diapasão, conhecendo o Código Civil e o Código de Processo Civil, deverá o operador do Direito conhecer as normas do Direito Registrário, em especial a Lei 6015/73 que possibilita o registro (sim registro e não a averbação – vide Apelação Cível 3012767-17.2013.8.26.0405, CSMSP, j. 07.10.14) da hipoteca judiciária (LRP art. 167, I, 2), segundo as Normas da Corregedoria do Estado de São Paulo (Capítulo XX, Seção II, 11; ‘a’, ‘2’), no Livro 2.

Ao analisar o Direito Registrário, constata-se que todo título que tiver acesso ao fólio registral deverá ser precedido da qualificação registral, antes do seu registro. Neste sentido:

A origem judicial do título (mandado de hipoteca judicial) apresentado para registro não torna prescindível a qualificação: a prévia conferência, destinada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato registral, é indispensável, inclusive nos termos do item 106 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.(APELAÇÃO CÍVEL N° 0000006-12.2011.8.26.0587, Conselho Superior da Magistratura TJSP JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 01.08.2012))

Como parâmetro (destacando um de vários) para a qualificação registral tem-se o art. 176 da LRP, enfatizando-se os princípios da especialidade (subjetiva e objetiva), bem como o da continuidade (LRP art. 195) e o artigo 225 da LRP. Não é demais destacar:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”. (Apelação Cível n° 31881-0/1 – CSM TJSP)

Caso a sentença, que deve ter a assinatura eletrônica em seu bojo (embora não expresso na legislação, convida-se a mais esta reflexão), não apresente os elementos necessários para o registro, este será possível? Nos aparenta que não, ficando, com isso a terceira e última reflexão a que se convida para solucionar a omissão e a antinomia legislativa.

MS. Fábio Pinheiro Gazzi

 Mestre em Direito (PUC/SP). Pós Graduado Lato Sensu em Direito dos Contratos (IICS/CEU). Professor em cursos de Graduação e Pós Graduação. Autor de diversos artigos e Palestras. Advogado.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

DIREITO DE PROPRIEDADE – LIMITAÇÕES E FUNÇÃO SOCIAL


DIREITO DE PROPRIEDADE – LIMITAÇÕES E FUNÇÃO SOCIAL

RONALDO GERD SEIFERT
Advogado, Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Pós-graduado em Direito Contratual pela PUC-SP.
http://lattes.cnpq.br/8895137732316980

Este breve texto busca traçar os contornos do direito de propriedade sob a perspectiva das limitações e função social.
O direito de propriedade, nos moldes romanos, era protegido como direito absoluto, exclusivo e perpétuo (MALUF, 1997, p.11). Absoluto, visto que as faculdades dela inerentes não encontram limites. Exclusivo, porque sobre um mesmo bem não há duas propriedades. Perpétuo porque o direito de propriedade não possui termo. Na idade moderna, o regime do direito de propriedade garantia ao proprietário poderes quase absolutos, quase plenos poderes de uso, gozo e disposição sobre o bem. Não há de se falar em direitos absolutos e ilimitados sequer no auge do liberalismo iluminista. Na própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 4º, já trazia alguma limitação aos direitos mais sagrados: “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limite senão os que asseguram aos outros membros os mesmo direitos [...]”. O caráter absoluto da propriedade perdeu sua robustez pelo desenvolvimento da teoria do abuso de direito, pelas limitações negativas e imposições positivas, deveres e ônus, até a noção de função social da propriedade (SILVA, 2006, p.72).
Em nosso ordenamento, a propriedade mantém caracteres clássicos, porém, sob uma perspectiva social. As intervenções legais sobre o âmbito da propriedade dão um novo contorno ao direito.
No Brasil, a ilicitude quanto ao abuso de direito é expressamente regulada pelo artigo 187 do Código Civil. Em relação à propriedade, o abuso de direito é proibido nos termos do § 2º do artigo 1.228 do diploma civil. Por fim, é proibido o uso nocivo ou que não gere qualquer benefício ao seu titular.
Quanto às limitações, há inúmeras que delineiam o direito de propriedade em nosso ordenamento jurídico. As limitações podem ser de caráter civil ou público. As primeiras visam coordenar as relações privadas. Já as limitações públicas estão fundamentadas na proteção de interesses da coletividade.
Cunha Gonçalves, nas palavras de Carlos Maluf (1997, p. 47), classifica as limitações em
a) limitações de interesse público ou geral, ou de utilidade pública, as quais são destinadas a impedir que o interesse, o arbítrio ou o egoísmo do proprietário prevaleça em absoluto sobre os interesses da coletividade; b) limitações de interesse privado, que visam a conciliar os interesses de proprietários com os de outros particulares; e que se subdividem em limitações de mero interesse privado e limitações de interesse semipúblico, como as que têm por fim tornar menos áspera e conflituosas as relações entre vizinhos e proteger a utilidade comum dos prédios contíguos.
Hely Lopes Meirelles (2006, p. 515) assinala a diferença entre limitações civis e limitações urbanísticas na propriedade urbana:
as restrições civis amparam os vizinhos, reciprocamente considerados em suas relações individuais; as limitações urbanísticas protegem a coletividade na sua generalidade. Umas e outras condicionam o uso da propriedade, restringem direitos individuais, coartam atividades particulares, tolhem a liberdade de construção, mas em nome de interesses diferentes.


Quanto às limitações de caráter público, seu fundamento é a solidariedade social (DROMI, 1995, p. 582).
As limitações administrativas podem ser em sentido amplo e estrito, sendo a primeira decorrente diretamente de lei (limitação legislativa) e a segunda do “poder de polícia” (limitação executiva)[1]. As limitações legislativas são gerais, impositivas, imprescritíveis, irrenunciáveis, intransacionáveis e não geram direito à indenização.
A proteção ao direito de propriedade é garantida constitucionalmente como direito fundamental e individual (artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal). Ademais, tal proteção se acentua na medida em que o direito de propriedade é princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso II, da Constituição Federal), tendo, inclusive, primordial valor em um dos fundamentos do Estado, qual seja livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal).
As limitações administrativas devem decorrer de lei, sob pena de serem inconstitucionais. É o que advém do inciso II do artigo 5º da Constituição. Mesmo havendo a possibilidade de limitação à propriedade, inegável é que o direito de propriedade possui no ordenamento uma proteção jurídica especial. O interesse individual do proprietário é minimamente garantido de forma intocável. Sequer mediante lei é possível retirar o conteúdo mínimo da propriedade, pois, se assim fosse, redundaria no esvaziamento ou inutilização do preceito constitucional. Em todo o direito de propriedade, como nos ensina o professor Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p. 42), há de existir uma possibilidade mínima de usar, gozar e dispor do bem, “pois é o plexo desses poderes de uso, gozo e disposição que, em sua unidade, recebe o nome de direito de propriedade. Elididos esses poderes, nada mais restaria”.
Além das limitações, outro instituto que rompe com o caráter absoluto da propriedade é a função social da propriedade.
Não são traçadas diferenças essenciais entre os limitações e função social, pois a doutrina apresenta pouca uniformidade nesse sentido. A respeito das divergências doutrinárias, basta notar que Eros Grau entende que limitações administrativas apenas geram obrigações de não fazer (GRAU, 2001, p. 42). Lúcia Valle Figueiredo entende que além de obrigações de não fazer, há possibilidade de se criar obrigações de fazer, citando exemplos em que a obrigação de fazer não se confunde com a utilidade essencial do bem (FIGUEIREDO, 2005, p. 27). Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a norma do § 4º do artigo 182 da Constituição é exemplo de obrigação positiva de “poder de polícia”, obrigação esta que se refere à utilidade principal ou essencial do bem (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 781).
A Constituição de 1988, conhecida pelo seu caráter social, regulou a função social da propriedade nos artigos 5º, XXIII, dentro da concepção de direitos fundamentais; artigo 170, III, como princípio da ordem econômica; artigo 182, § 2º, dentro da política urbana e; artigo 186, referente à política agrícola. Como se pode observar, a função social em nossa Constituição foi tratada com amplitudes diferentes em cada um dos dispositivos. Embora em diversidade de tratamento, cada preceito exala a normatividade da função social de forma harmônica e ordenada. Em decorrência da unidade coerente da Constituição, a noção de função social em nosso ordenamento é una.
Pelo inciso III do artigo 170, fica evidente que a função social da propriedade é um princípio cujos valores se irradiam sobre todos os instrumentos jurídicos, institutos e normas referentes à propriedade, isto é, em todo o regime de propriedade no Brasil.
Conforme ensina José Diniz Moraes (1999, p. 73), em relação ao inciso XXIII do artigo 5º, o princípio irradia seus efeitos
em dois sentidos diversos: garante ao proprietário a inviolabilidade do seu domínio quando a satisfaz, impedindo que o legislador ou administrador público empreendam disciplina e atividade diversa, sob o mesmo fundamento; garante aos interessados (particulares, administradores, legisladores, magistrados) medidas idôneas a combater atos incompatíveis com o fundamento da atribuição do domínio, ou em razão dele, quando não atingido o princípio da função social da propriedade.


Traçados os ditames essenciais dos dois dispositivos constitucionais mais genéricos do princípio da função social da propriedade, insta enfrentar conceitualmente os valores e a essência da norma principiológica. Em primeiro lugar, deve-se enfrentar o termo função. Santi Romano, em Principii di diritto costituzionale generale, ensina que “as funções (offIicia, munera) são os poderes que se exercem não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de outrem ou por um interesse objetivo” (apud GRAU, 2001, p. 33). No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello assinala: “existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las” (BANDEIRA DE MALLO, 2006, p. 60). Carlos Ari Sundfeld ensina que função “é o poder de agir cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente” (SUNDFELD, 1996, p. 156 ).
Passando à noção de função social da propriedade, Ana Prata (p. 174), em um conceito analítico, entende que é prioritariamente “meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais justas, de promover a igualdade real e de obter um aumento de riqueza socialmente útil e a sua distribuição em termos equitativos”.
Outra conceituação analítica, agora, de Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p 43), é que função social de propriedade
consiste em que ela deva cumprir um destino economicamente útil, produtivo, de maneira a satisfazer as necessidades sociais preenchíveis pela espécie tipológica do bem (ou pelo menos não poderá ser utilizada de modo a contraditar estes interesses), cumprindo, destarte, às completas, sua vocação natural, de modo a canalizar as potencialidades residentes no bem em proveito da coletividade (ou, pelo menos, não poderá ser utilizada de modo a adversá-las).

Eros Grau (2001, p. 42) ensina que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário
o dever de exercer a propriedade em benefício de outrem e não apenas o de não exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente de não-fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.


A função social determina fins aos bens que atendam aos interesses da sociedade. Retira do direito o caráter essencialmente egoístico, passando a contextualizá-lo aos interesses sociais. O interesse público representado na função social é fundamento de obrigações de fazer do proprietário. Assim, a função social da propriedade se manifesta como dever do proprietário[2]. Esse dever não aniquila o seu direito subjetivo. Nem poderia assim fazer diante da importância constitucional consagrada à propriedade privada que garante ao proprietário o exercício do uso, fruição e disposição do bem em conformidade aos seus interesses.
A inter-relação entre poder e dever do proprietário “é expressão de uma fórmula ambígua, na qual se exprime a contradição dogmática de inserir no conceito de direito subjetivo de função, que supõe obrigação e ônus” (GRAU, 1983, p. 69). O poder e o dever componentes do direito de propriedade agem em harmonia, de forma que o dever não retire do proprietário o uso ou gozo que sirva aos seus interesses e, por outro lado, de forma que o poder não aflija os interesses sociais.
Portanto, o direito de propriedade é um direito subjetivo acompanhado de uma função social. A própria Constituição deixa evidente tal conformação do direito (artigo 5º, XXII e XXIII; 170, II e III). Não há incompatibilidade entre o direito e função social da propriedade, embora acenem para direções opostas. O caráter dúplice da propriedade – servir ao individualismo lismo e às necessidades sociais – exige uma compatibilização entre as duas naturezas (TAVARES, 2003, p. 479). Ao mesmo tempo em que o direito individual é garantido, existe uma função a ser positivamente cumprida, de forma que o direito de propriedade deve ser exercido sem se desviar de sua função. O direito de propriedade é um poder-dever do proprietário.
É importante notar que as limitações e as funções sociais impõem restrições ao uso da propriedade de forma a delinear o próprio direito. Em outras palavras, as limitações e funções não alteram o direito de propriedade. Em verdade, dão o contorno jurídico do direito, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p.39):
as limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem na própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe desenham os contornos[3].

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, vol. 84. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 2006.

DROMI, Roberto. Derecho administrativo. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005.

GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.

GRAU, Eros Roberto. A propriedade rural e a função social da propriedade. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 33. São Paulo, Malheiros, 2001

MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. São Paulo: Saraiva, 1997.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999.

PRATA, Ana. A tutela da autonomia privada. Lisboa: Almedina, [s.d.].

SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2003.





[1] A respeito das diferenças entre limitações administrativas em sentido amplo e em sentido específico, é de grande valia a obra de Luís Manuel Fonseca Pires. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 127 e 128.
[2] “Quem cumpre ou deve cumprir a função embutida na propriedade – isto é, no direito subjetivo – de que é titular é o proprietário da coisa”. GRAU, 1983, p. 70.
[3] BANDEIRA DE MELLO, 1987, p. 39.