A ORIGEM DO CONTROLE
JUDICIAL DIFUSO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Professor Tutor Mateus Pieroni Santini
Mestre em direito do estado pela pontifícia
universidade católica de são paulo (puc-sp). especialista em direito público.
Professor-tutor da pós-graduação de direito da rede lfg/anhanguera. professor
universitário e advogado, com experiência em direito público municipal.
Colaborador do livro “dicas para concurso público”, da editora saraiva.
http://lattes.cnpq.br/9545207433473130
A primeira Constituição
da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil foi promulgada em 24 de
fevereiro de 1891 e é por meio dela que se inaugura a 2ª fase da fiscalização
de constitucionalidade brasileira, com a introdução do controle judicial difuso.
Em apertada síntese, a
Constituição Republicana do Brasil de 1891 adotou a forma federativa de Estado,
formada pela união perpétua e indissolúvel de suas antigas Províncias, que
passa a constituir-se em Estados Unidos do Brasil. Opta, ademais, pelo regime
presidencialista. Suprime, de mais a mais, o Poder Moderador defendido por
Benjamin Constant e passa a adotar a tradicional tripartição dos poderes
(Legislativo, Executivo e Judiciário). Cumpre ressaltar, por fim, a existência
de duas ordens constitucionais no Estado brasileiro de 1891, uma, a central,
representada pela União e regida pela Constituição Federal, sendo o Supremo
Tribunal Federal o seu guardião maior, e outra, as estaduais[1] [2],
plasmadas nas Constituições dos respectivos Estados.
Não é difícil perceber,
à vista das opções do Constituinte acima narradas, que a Constituição de 1891
recebeu o influxo das ideologias presentes na Constituição norte-americana. Não
por outra razão que a inspiração do modelo de controle de constitucionalidade veio
do modelo do judicial review
norte-americano (“difuso-incidental”)[3].
É verdade que alguns fatores dificultavam a implementação do protótipo
norte-americano de controle no Brasil. Em primeiro lugar, os Estados Unidos
optaram pelo sistema inglês da “common
law”, já o Brasil mantinha fiel ao modelo romano-germânico. Além disso,
enquanto a República Federativa do Brasil surgiu a partir da desagregação do
Estado Unitário (federalismo por desagregação ou federalismo, os Estados Unidos
da América percorreram caminho inverso para a sua formação, já que se
originaram, como federação, da agregação de Estados preexistentes (federalismo
centrípeto). Some-se a isso o fato da República conservar alguns resquícios da
prática do regime monárquico, mantendo juízes do Supremo. Por tais aspectos é
possível identificar a indignação e a resistência de alguns em aceitar o
controle judicial de constitucionalidade, já que a Constituição de 1824, como
vimos, não entregava tal mister ao Judiciário. Mesmo após a Constituição de 1891,
dúvidas e desconfianças existiam quanto ao aparecimento e utilização do
instituto. Porém, o esforço de Ruy
Barbosa parece ter sido decisivo para a execução e consagração do modelo
difuso. Tanto que, citando Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Clèmerson Merlin
Clève (1995, p.66) destaca que “princípio, não obstante os claros preceitos
referidos, houve por parte do Poder Judiciário, dúvida quanto ao exercício de
relevante atribuição, e timidez na sua utilização, em aceitando-a. Isso só se
tornou pacífico, após os trabalhos de Ruy, ao mostrar, à concludência, o
alcance dos seus dispositivos, em reconhecendo essa prerrogativa do Poder
Judiciário”.
A propósito, Ruy
Barbosa, em sua obra “Os atos
inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal”,
sustentava que
O único lance da
Constituição americana, onde se estriba ilativamente o juízo, que lhe atribui
essa intenção,é o do art. III, seç. 2ª, cujo teor reza assim: ‘O poder
judiciário estender-se-á a todas as causas, de direito e equidade, que nasceram
desta Constituição, ou das leis dos Estados Unidos.
Não se diz que
os tribunais sentenciarão sobre a validade, ou invalidade, das leis. Apenas se
estatui que conhecerão das causas regidas pela Constituição, como conformes ou
contrárias a ela.
Muito mais
concludente é a Constituição brasileira. (apud
MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p.1.035)
De fato, Ruy tinha
razão. Dois são os dispositivos paradigmáticos[4].
Nos termos da redação do art. 60, “a”
da Constituição competia aos Juízes ou Tribunais Federais processar e julgar as
causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da
Constituição federal. Já o artigo 59, §1º, “a” dispunha que das sentenças das
Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo
Tribunal Federal quando se questionar a
validade, ou aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do
Estado for contra ela.
E assim se consolidava
o sistema de controle difuso-incidental de constitucionalidade em detrimento do
modelo concentrado.
Logo, as justiças da
União e as justiças dos Estados desfrutavam de igual competência para examinar
a validade das leis perante a Constituição. O que a Carta Política apenas
estabelecia era a possibilidade de se insurgir, pela via recursal, contra a
decisão do tribunal do Estado que declarava a inconstitucionalidade das leis
federais, levando o caso ao Supremo Tribunal Federal. Mas o certo é que a todos
os juízes e tribunais se concedia o direito de apreciar a constitucionalidade
das leis da União, bastando apenas observar a competência da justiça federal e
da estadual.
De mais a mais, tanto o
autor quanto o réu poderiam suscitar a inconstitucionalidade como incidente no
processo.[5]
A decisão, por sua vez,
proferida operava-se “inter partes” e
“ex tunc”. Vale dizer, a sentença que
declarava a inconstitucionalidade do ato atacava-o na sua origem para
pronunciar a sua nulidade e torná-lo sem efeito. Por outro lado, a declaração
de inconstitucionalidade restringia-se às partes litigantes, e, por isso, o
juiz e o tribunal só deixavam de aplicar a lei ao caso concreto envolvendo as
partes. Não havia a possibilidade de terceiros estranhos ao processo serem
contemplados com a decisão de inconstitucionalidade. Mesmo o “decisum”
prolatado pelo Supremo Tribunal Federal (órgão de cúpula do Poder Judiciário)
era dotado dos mesmos efeitos. Nesse particular, o modelo adotado à época pelo
Brasil apresentava graves deficiências, porque não se previa um eficiente
mecanismo de uniformização das decisões, como estatuído pelo princípio do “stare decisis” do sistema
norte-americano, tradicionalmente atrelado ao common law. Com isso,
corria-se o sério risco de existirem decisões conflitantes entre os diversos
órgãos pertencentes aos quadros do Poder Judiciário. Isso porque, como os
efeitos só se operam “inter partes”,
é bem possível que um determinado juiz entenda ser inconstitucional a lei
impugnada e outro juiz a conceba como constitucional. Ou seja, o sistema judicial
difuso de controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de 1891
possibilita a existência de leis inconstitucionais para uns e constitucionais
para outros, em um contexto de verdadeira insegurança jurídica.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis
Roberto. Curso de direito constitucional
contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processo ADI
514/PI, Rel. Min. Celso Mello. Informativo
STF. Brasília, n. 499, 28 mar. 2008.
CAMPOS, G. Bidart.
El derecho de la constituición y su
fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar, 1995.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002.
GARCIA, Maria.
Arguição de descumprimento: direito do cidadão. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v.
32, p.99-106, 2000.
GOMES, Joaquim Barbosa. Evolução do controle de
constitucionalidade de tipo francês. Revista
de Informação Legislativa. Brasília, ano 40, n. 158, pp. 97-125, abr./jun. 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do
direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
[1]
Nos termos do artigo 63 da Constituição de 1891, tem-se: “Art. 63 - Cada Estado reger-se-á pela
Constituição e pelas leis que adotar respeitados os princípios constitucionais
da União.” (BRASIL, 1891)
[2]
Sobre o controle de constitucionalidade no plano dos Estados federados da
Constituição de 1891, averba Anna Cândida da Cunha Ferraz: “A Constituição de
1891 não se referia ao sistema de defesa das constituições estaduais, matéria
que, pela interpretação dada ao artigo 63, base da autonomia dos Estados,
deveria ser solucionada no âmbito interno de cada ente federativo. Estes usaram
amplamente tal competência. Assim, as constituições estaduais, de modo geral,
criaram sistemas de defesa próprios, de natureza política, de controle direto
incidindo sobre as leis estaduais e sobre as resoluções e atos das
municipalidades, e estruturaram-no livremente, sem obediência a qualquer modelo
prefixado, ainda que se assemelham-se entre si. Não raro este controle político
coexistia com o sistema de controle jurisdicional pelo método difuso, quando em
jogo direitos subjetivos individuais (isto por decorrência lógica do princípio
da supremacia da Constituição Federal). Algumas Constituições previam uma
espécie de jurisdição concentrada, como ocorria com a Constituição do Rio
Grande do Sul, de 14.07.1891, art. 52, §5º, que atribuía competência ao
Superior Tribunal de Justiça para julgar causas propostas pelo Governo do
Estado, fundadas em disposição da Constituição do Estado. [...] A Constituição
de Santa Catarina atribuía à Assembléia Legislativa competência para fazer
leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como anular as resoluções
dos Conselhos e os actos dos prefeitos municipaes, quando contrários à
Constituição Estadual (cf. artigos 21, IX e XXIII e 70, I); [...]. A
Constituição do Estado de São Paulo, de 14 de julho de 1891, estabelecia em
seus artigos 20, item 12, 54 e 55, respectivamente, que competia ao Congresso
Estadual ‘fazer leis, suspendê-las, interpretá-las e revogá-las e anular as
resoluções e atos da municipalidade, quando contrários à Constituição Estadual
e à Constituição Federal e que o Presidente do Estado poderia, na ocorrência
dos casos precedentes, no intervalo das sessões legislativas, ‘suspender a
execução de tais atos’.” (FERRAZ, 2009, p.139-140)
[3] O
controle judicial de constitucionalidade já se revelava desde a Constituição
Provisória de 22 de junho de 1890 (Decreto n. 510, art. 58, §1º, alínea “b”) e
no Decreto n. 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal
(art. 9º, parágrafo único, alíneas “a” a “c”). Sobre tal aspecto, no entanto,
Lenio Streck (2004, p.425) discorre que: “Embora a idéia de controle de
constitucionalidade já estivesse estampada na exposição de motivos do Decreto
n. 848, sob nítida inspiração no judicial
review norte-americano, somente com a Constituição de 1891 a tese
republicana ganha forma e estrutura, a partir da designação de um órgão de
cúpula do Poder Judiciário que seria encarregado de realizar esse controle. Por
isso é possível afirmar que a teoria constitucional brasileira nasce com a
República e a Constituição de 1891. Sua interpretação clássica fundamenta-se na
obra de Rui: pensamento que analisa a problemática política a partir do
Direito, considerando que da existência de uma Constituição liberal democrática
dependeria a legitimidade e a estabilidade das instituições.”
[4] A
reforma constitucional de 1926 deu nova redação à alínea “a” do §1º do art. 59,
tornando induvidoso o controle judicial de constitucionalidade.
[5]
Cumpre ressaltar que a Constituição de 1891 trouxe em seu artigo 72, §22
(“Dar-se-á o habeas corpus, sempre
que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou
coação por ilegalidade ou abuso de poder”) o habeas corpus como genuíno instrumento ao exercício do controle de
constitucionalidade de atos do Poder Público, contrários aos diretos
individuais.