O
que se entende por quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro)?
JOSÉ
CARLOS TRINCA ZANETTI
Mestre
em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Especialista em
Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Professor da Pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Puc/Minas.
Professor tutor da Pós-graduação de Ciências Penais e Criminologia da
Universidade Anhanguera-LFG. Advogado.
http://lattes.cnpq.br/8675605889471596
A expressão “Síndrome
de Dom Casmurro” faz referência à obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, na
qual Bento de Albuquerque Santiago (Bentinho) narra sua história de amor com
Capitu e o ciúme que advém desse relacionamento, em virtude das dúvidas quanto
à eventual traição de sua esposa com seu melhor amigo (Escobar).
Em 1900, a literatura
de Machado de Assis já nos contava um romance que talvez seja um dos mais
ilustrativos exemplos de que se pode valer o Processo Penal para pensar o
chamado quadro mental paranoico decorrente da busca pela prova que confirme a
hipótese psicológica inicial. (...) será tomada a história de Dom Casmurro como
ponto de partida à reflexão.
O exemplo é ótimo,
afinal, a história de Bentinho, é a história de um bacharel em Direito,
mergulhado numa trama psicológica em que cada fato observado serve para
contaminar a sua subjetividade e confirmar uma hipótese previamente inscrita em
si: a traição de Capitu. Atordoado por várias circunstâncias, Bentinho era uma
criança fechada em si mesma, razão pela qual foi apelidado de Dom Casmurro. Com
o passar dos anos, desistiu da vida interna no seminário para se entregar ao
amor que sentia por Capitu, filha de seus vizinhos. Dedicou-se ao estudo, se
formou em Direito, casou com a mulher que se apaixonara e teve um filho chamado
Ezequiel. Cúmplice de sua felicidade, esteve sempre ao seu lado um grande
amigo, de nome Escobar, companheiro desde a época do seminário.
Foi no enterro de
Escobar, recém-falecido, que o sentimento de Bentinho ganhou força. A
contemplação de Capitu ao cadáver lhe pareceu estranha, intensa demais. O ciúme
aumentou e com ele o quadro mental paranoico. Ao que lhe parece, seu filho,
Ezequiel estava tomando a feição de Escobar. Pensa em matar mulher e filho, mas
não tem coragem. Agora nada importa, a ideia tomou parte de sua estrutura
psicológica, a hipótese passou a ter primazia sobre os fatos. Tudo faz sentido
a cada folha de sua história pessoal. Pois aí está: o adultério é o “crime”
eleito como hipótese por Dom Casmurro. Talvez exista um lastro que dê alguma
coerência a este pensamento ou não. Provas evidentes, não há, ainda. Mas há o
desejo de descobrir este mistério. Aquele que deve se convencer é o mesmo que
sai atrás deste convencimento. Não sabe que provas serão achadas, ou se achará
mesmo alguma coisa. Sabe apenas que tem uma hipótese: a traição de Capitu, ou
então, para o que olharia? Que caminho tomaria como fundamento ao seu pensamento?
Um dos mais finos romances da literatura brasileira traduz o conto da busca
pela prova que confirmasse a hipótese central. Mas, afinal, houve ou não
traição? Eis aqui a inapreensão do conceito material de verdade e toda a
angústia da finalidade retrospectiva do processo, conforme trabalhado. Nunca
chegaremos nem próximo ao fato histórico imputado à Capitu. Esta sentença não
foi escrita por Machado de Assis e, portanto, não foi proferida pelo seu
julgador: Dom Casmurro. Mas nem precisava. Saber se houve ou não a traição de
Capitu não importa em nada, absolutamente. A hipótese já foi tomada como
decisão por Bentinho, desde o início do livro. Este é o ponto: a verdade
construída por Bentinho (MELCHIOR, 2012, p. 153-154).
Assim, a terminologia -
quadros
mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro) – foi criada para
designar o juiz que, dotado de poderes investigatórios, primeiro decide e
depois sai à procura de material probatório para alicerçar e justificar sua
decisão.
Ao proceder ao
recolhimento da prova, o magistrado antecipa a formação do juízo quanto à
solução do litígio, pois, assumindo a iniciativa probatória, saberá o que
almeja encontrar, gerando uma tendência que o desproverá da indispensável
imparcialidade para apreciar os elementos carreados aos autos, comprometendo a
estrutura dialética do processo. Nesse contexto, o magistrado passa a
desenvolver quadros mentais paranoicos, pois, primeiro, define-se a hipótese
(decide) e, depois, procuram-se os fatos (provas) que legitimem a decisão já tomada.
Aury Lopes Jr. preconiza: Atribuir poderes instrutórios a um juiz – em
qualquer fase – é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo
penal democrático.
No mesmo sentido,
encontram-se as lições de Cleber Masson e Vinícius Marçal: Exatamente em razão do sistema processual
acusatório – que cuidou de separar de maneira bem nítida as funções de acusar,
defender e julgar –, não deve o magistrado ter uma participação ativa na
primeira fase da persecutio criminis,
de maneira a indicar pelo caminho pelo qual a investigação deve seguir. Nesse
cenário, poderia o juiz começar a realizar os chamados quadros mentais
paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro), em franco prejuízo do investigado
(MARÇAL; MASSON, 2015, p. 94).
Referências
Biffe Junior, João. Concursos públicos:
terminologias e teorias inusitadas. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
MÉTODO, 2017
LOPES JR., Aury. Direito processual
penal. 11. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014.
MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. São Paulo: Método, 2015.
MELCHIOR, Antonio Pedro. Gestão da prova
e o lugar do discurso do julgador – o sintoma político do processo penal
democrático. Rio de Janeiro: 2012. Disponível em:
<http://portal.estacio.br/media/4120373/antonio%20pedro%202011.pdf>. Acesso
em: 9 dez. 2015.