Há coisas que simplesmente não
sabemos que existem, mas existem. E o leitor pode conhecer a importância do
controle de convencionalidade, tese apresentada por alguns colegas, dentre eles
Valério Mazzuoli. Por isso na primeira coluna do ano partimos de uma sugestão
de livro: O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal
e o Pacto de São José da Costa Rica, de Nereu José Giacomolli, editora
Atlas. O autor é professor de Processo Penal (PUC-RS) e desembargador do TJ-RS,
além de um grande cara.
Todos nós ouvimos falar em maior ou
menor grau de devido processo legal e muitas vezes ficamos impressionados com a
nossa ignorância em relação ao Sistema de Proteção dos Direitos Humanos
existente no plano supranacional e que condenou o Brasil, e países vizinhos,
diversas vezes. Daí que a leitura da obra mostra que diversos países foram
obrigados a adequar o sistema processual penal às diretrizes de Direitos
Humanos. E boa parte do senso comum teórico dos juristas não sabe disso.
Rui Cunha Martins, professor de
Coimbra, no prefácio, bem resumiu as razões para se ler o trabalho de Nereu: “A
primeira razão é a competência do autor. A segunda é a manifesta importância do
tema na conjuntura atual. A terceira é a pertinente estratégia de estruturação
da obra, aqui se incluindo o grau de inovação”.
E aqui na terceira razão sublinhada,
cabe dizer que o livro apresenta a compreensão do Tribunal Penal Internacional
e do Sistema Interamericano (CADH, CIDH), em pleno vigor no Brasil (Decreto
Legislativo 27, de 28.05.1992 e Decreto Executivo 678, de 6 de novembro de
1992, bem assim Decreto Legislativo 89, de 3 de dezembro de 1998),
proporcionando ao leitor os fundamentos dós órgãos internacionais. Aponta
também os cuidados para admissibilidade da pretensão, notadamente o esgotamento
das vias internas.
No que toca ao processo penal
brasileiro, por exemplo, partindo da necessidade de humanização das práticas
internas, narra a análise do comportamento do Estado brasileiro nos casos
Damião Ximenes Lopes, Maria da Penha, Lund, Garibaldi, Escher e outros. E
conhecer os fundamentos das condenações, especialmente o caso Maria da Penha,
pode fazer ver a importância dos Direitos Humanos.
Exemplificativamente a corte já
decidiu que: a) nos casos de interceptação telefônica o acusado precisa ter
ciência de toda a conversação antes da eliminação da parte omitida pela
acusação; que as regras restritivas da privacidade devem ser compreendidas pelo
viés da proporcionalidade e que a polícia militar não pode requerer, dado que
não é órgão com atribuição para tanto; b) a presunção de inocência, segundo
Giacomolli, na linha adotada pelo Supremo Tribunal Federal, rejeita a prisão
antecipadora da pena e desprovida de razões concretas (RHC 111.327), embora boa
parte da magistratura utilize a prisão como mecanismo de controle social
imediato ou mesmo para pressão psicológica (delata que te concedo benefícios);
c) o acusado possui o direito de estar presente nos julgamentos e que alegações
burocráticas não podem impedir o direito de estar presente e se confrontar com
a prova que lhe pode causar a condenação; d) a defesa deve ter a última palavra
nos julgamentos, sendo ilegal a manifestação do Ministério Público após a
sustentação oral, salvo por questão de ordem. Se a acusação deseja sustentar
deve fazer antes.
Assim é que o livro discorre sobre a
compreensão da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o
estado de inocência; ampla defesa; contraditório; direito à prova; da não
produção de prova contra si mesmo e direito ao silêncio; fundamentação das
decisões; imparcialidade; juiz natural; acordos no processo penal; publicidade;
sigilo; prazo razoável; prisão cautelar e direito ao recurso. Em todos os temas
há indicação de julgamentos pertinentes à compreensão da CIDH.
A relevância e atualidade do livro
são impressionantes. De um lado descreve o conteúdo e fundamentos das decisões
da Corte Interamericana e, por outro, demonstra como o processo penal
brasileiro está em desconformidade com a cláusula do devido processo legal.
Aliás, conforme temos sustentado nos nossos escritos, cada vez mais se mostra
importante entender que o Brasil assumiu compromissos externos de cumprimento
dos Direitos Humanos. Aos que alegam que só defendemos “bandidos”, a criação dos
juizados de violência doméstica foi impulsionada pela decisão da CIDH. A
existência efetiva de um sistema de controle do poder exercido em face de cada
um de nós é condição de possibilidade à implementação do devido processo legal
substancial.
Esperamos sinceramente continuar
repensando o processo penal brasileiro em 2015, quem sabe, a partir do devido
processo legal substancial. Precisamos ampliar nossos horizontes democráticos,
como diz Giacomolli: “O existir, mesmo na esfera superior da Constituição, a
latere da convencionalidade, em determinados casos, mostra-se insuficiente.
Todos os poderes e a cidadania se encontram sob a direção fundamental
constitucional, mas nem sempre em uma completude democrática, embora
represente, ao que aqui é objeto de enfrentamento, um significativo avançar no
direcionamento do devido processo constitucional. Esse adelante encontra forte
resistência em significativa parcela dos sujeitos processuais oficiais, na
doutrina e na jurisprudência, pois forjados na cultura autoritária,
burocratizada a manu militari, inquisitorial e na crença regeneradora da pena e
do salvamento pelo processo penal”. Tenhamos sorte em 2015. Obrigado pela
parceria e leitura da coluna Limite Penal.
Aury Lopes Jr é
doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual
Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre
Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela
UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 2
de janeiro de 2015, 10h11
Professora Tutora Lilian
Barçalobre Manoel