DIREITO DE PROPRIEDADE – LIMITAÇÕES E
FUNÇÃO SOCIAL
RONALDO GERD SEIFERT
Advogado, Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.
Pós-graduado em Direito Contratual pela PUC-SP.
http://lattes.cnpq.br/8895137732316980
Este breve texto busca traçar os contornos do direito de propriedade sob
a perspectiva das limitações e função social.
O direito de propriedade, nos moldes romanos, era protegido como direito
absoluto, exclusivo e perpétuo (MALUF, 1997, p.11). Absoluto, visto que as
faculdades dela inerentes não encontram limites. Exclusivo, porque sobre um
mesmo bem não há duas propriedades. Perpétuo porque o direito de propriedade
não possui termo. Na idade moderna, o regime do direito de propriedade garantia
ao proprietário poderes quase absolutos, quase plenos poderes de uso, gozo e
disposição sobre o bem. Não há de se falar em direitos absolutos e ilimitados
sequer no auge do liberalismo iluminista. Na própria Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 4º, já trazia alguma limitação aos
direitos mais sagrados: “o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem por limite senão os que asseguram aos outros membros os mesmo direitos [...]”. O caráter absoluto da
propriedade perdeu sua robustez pelo desenvolvimento da teoria do abuso de
direito, pelas limitações negativas e imposições positivas, deveres e ônus, até
a noção de função social da propriedade (SILVA, 2006, p.72).
Em nosso ordenamento, a propriedade mantém caracteres clássicos, porém,
sob uma perspectiva social. As intervenções legais sobre o âmbito da
propriedade dão um novo contorno ao direito.
No Brasil, a ilicitude quanto ao abuso de direito é expressamente
regulada pelo artigo 187 do Código Civil. Em relação à propriedade, o abuso de
direito é proibido nos termos do § 2º do artigo 1.228 do diploma civil. Por
fim, é proibido o uso nocivo ou que não gere qualquer benefício ao seu titular.
Quanto às limitações, há inúmeras que delineiam o direito de propriedade
em nosso ordenamento jurídico. As limitações podem ser de caráter civil ou
público. As primeiras visam coordenar as relações privadas. Já as limitações
públicas estão fundamentadas na proteção de interesses da coletividade.
Cunha Gonçalves, nas palavras de Carlos Maluf (1997, p. 47), classifica
as limitações em
a) limitações de interesse público ou geral, ou de
utilidade pública, as quais são destinadas a impedir que o interesse, o
arbítrio ou o egoísmo do proprietário prevaleça em absoluto sobre os interesses
da coletividade; b) limitações de interesse privado, que visam a conciliar os
interesses de proprietários com os de outros particulares; e que se subdividem
em limitações de mero interesse privado e limitações de interesse semipúblico,
como as que têm por fim tornar menos
áspera e conflituosas as relações entre
vizinhos e proteger a utilidade comum dos prédios contíguos.
Hely Lopes Meirelles (2006, p. 515) assinala a diferença entre limitações
civis e limitações urbanísticas na propriedade urbana:
as restrições
civis amparam os vizinhos, reciprocamente considerados em suas relações
individuais; as limitações urbanísticas protegem
a coletividade na sua generalidade. Umas e outras condicionam o uso da
propriedade, restringem direitos individuais, coartam atividades particulares,
tolhem a liberdade de construção, mas em nome de interesses diferentes.
Quanto às limitações de caráter público, seu fundamento é a solidariedade
social (DROMI, 1995, p. 582).
As limitações administrativas podem ser em sentido amplo e estrito, sendo
a primeira decorrente diretamente de lei (limitação legislativa) e a segunda do
“poder de polícia” (limitação executiva)
.
As limitações legislativas são gerais, impositivas, imprescritíveis,
irrenunciáveis, intransacionáveis e não geram direito à indenização.
A proteção ao direito de propriedade é garantida constitucionalmente como
direito fundamental e individual (artigo 5º, inciso XXII, da Constituição
Federal). Ademais, tal proteção se acentua na medida em que o direito de
propriedade é princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso II, da
Constituição Federal), tendo, inclusive, primordial valor em um dos fundamentos
do Estado, qual seja livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, da Constituição
Federal).
As limitações administrativas devem decorrer de lei, sob pena de serem
inconstitucionais. É o que advém do inciso II do artigo 5º da Constituição.
Mesmo havendo a possibilidade de limitação à propriedade, inegável é que o
direito de propriedade possui no ordenamento uma proteção jurídica especial. O interesse
individual do proprietário é minimamente garantido de forma intocável. Sequer
mediante lei é possível retirar o conteúdo mínimo da propriedade, pois, se
assim fosse, redundaria no esvaziamento ou inutilização do preceito
constitucional. Em todo o direito de propriedade, como nos ensina o professor
Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p. 42), há de existir uma possibilidade
mínima de usar, gozar e dispor do bem, “pois é o plexo desses poderes de uso,
gozo e disposição que, em sua unidade, recebe o nome de direito de propriedade.
Elididos esses poderes, nada mais restaria”.
Além das limitações, outro instituto que rompe com o caráter absoluto da
propriedade é a função social da propriedade.
Não são traçadas diferenças essenciais entre os limitações e função
social, pois a doutrina apresenta pouca uniformidade nesse sentido. A respeito
das divergências doutrinárias, basta notar que Eros Grau entende que limitações
administrativas apenas geram obrigações de não
fazer (GRAU, 2001, p. 42). Lúcia Valle Figueiredo entende que além de
obrigações de não fazer, há
possibilidade de se criar obrigações de fazer, citando exemplos em que a
obrigação de fazer não se confunde com a utilidade essencial do bem
(FIGUEIREDO, 2005, p. 27). Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a norma
do § 4º do artigo 182 da Constituição é exemplo de obrigação positiva de “poder
de polícia”, obrigação esta que se refere à utilidade principal ou essencial do
bem (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 781).
A Constituição de 1988, conhecida pelo seu caráter social, regulou a
função social da propriedade nos artigos 5º, XXIII, dentro da concepção de
direitos fundamentais; artigo 170, III, como princípio da ordem econômica;
artigo 182, § 2º, dentro da política urbana e; artigo 186, referente à política
agrícola. Como se pode observar, a função social em nossa Constituição
foi tratada com amplitudes diferentes em cada um dos dispositivos. Embora em
diversidade de tratamento, cada preceito exala a normatividade da função social
de forma harmônica e ordenada. Em decorrência da unidade coerente da
Constituição, a noção de função social em nosso ordenamento é una.
Pelo inciso III do artigo 170, fica evidente que a função social da propriedade é um princípio cujos valores se
irradiam sobre todos os instrumentos jurídicos, institutos e normas referentes
à propriedade, isto é, em todo o regime de propriedade no Brasil.
Conforme ensina José Diniz Moraes (1999, p. 73), em relação ao inciso
XXIII do artigo 5º, o princípio irradia seus efeitos
em dois sentidos diversos: garante ao proprietário a
inviolabilidade do seu domínio quando a satisfaz, impedindo que o legislador ou
administrador público empreendam disciplina e atividade diversa, sob o mesmo
fundamento; garante aos interessados (particulares, administradores,
legisladores, magistrados) medidas idôneas a combater atos incompatíveis com o
fundamento da atribuição do domínio, ou em razão dele, quando não atingido o
princípio da função social da propriedade.
Traçados os ditames essenciais dos dois dispositivos constitucionais mais
genéricos do princípio da função social da propriedade, insta enfrentar
conceitualmente os valores e a essência da norma principiológica. Em primeiro
lugar, deve-se enfrentar o termo função.
Santi Romano, em Principii di diritto
costituzionale generale, ensina que “as funções (offIicia, munera) são os poderes que se exercem
não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de
outrem ou por um interesse objetivo” (apud
GRAU, 2001, p. 33). No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello
assinala: “existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para
tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las” (BANDEIRA DE MALLO, 2006,
p. 60). Carlos Ari Sundfeld ensina que função “é o poder de agir cujo exercício
traduz verdadeiro dever jurídico e
que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao
agente” (SUNDFELD, 1996, p. 156 ).
Passando à noção de função social
da propriedade, Ana Prata (p. 174), em um conceito analítico, entende que é
prioritariamente “meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais
justas, de promover a igualdade real e de obter um aumento de riqueza
socialmente útil e a sua distribuição em termos equitativos”.
Outra conceituação analítica, agora, de Celso Antônio Bandeira de Mello
(1987, p 43), é que função social de propriedade
consiste em que ela deva cumprir um destino economicamente
útil, produtivo, de maneira a satisfazer as necessidades sociais preenchíveis
pela espécie tipológica do bem (ou pelo menos não poderá ser utilizada de modo
a contraditar estes interesses), cumprindo, destarte, às completas, sua vocação
natural, de modo a canalizar as potencialidades residentes no bem em proveito
da coletividade (ou, pelo menos, não poderá ser utilizada de modo a
adversá-las).
Eros Grau (2001, p. 42) ensina que o princípio da função social da
propriedade impõe ao proprietário
o dever de exercer a propriedade em benefício de
outrem e não apenas o de não exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que
a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos
positivos – prestação de fazer,
portanto, e não, meramente de não-fazer
– ao detentor do poder que deflui da propriedade.
A função social determina fins aos bens que atendam aos interesses da
sociedade. Retira do direito o caráter essencialmente egoístico, passando a
contextualizá-lo aos interesses sociais. O interesse público representado na
função social é fundamento de obrigações de fazer do proprietário. Assim, a
função social da propriedade se manifesta como dever do proprietário
.
Esse dever não aniquila o seu direito subjetivo. Nem poderia assim fazer diante
da importância constitucional consagrada à propriedade privada que garante ao
proprietário o exercício do uso, fruição e disposição do bem em conformidade
aos seus interesses.
A inter-relação entre poder e dever do proprietário “é expressão de uma
fórmula ambígua, na qual se exprime a contradição dogmática de inserir no
conceito de direito subjetivo de função, que supõe obrigação e ônus” (GRAU,
1983, p. 69). O poder e o dever componentes do direito de propriedade agem em
harmonia, de forma que o dever não retire do proprietário o uso ou gozo que
sirva aos seus interesses e, por outro lado, de forma que o poder não aflija os
interesses sociais.
Portanto, o direito de propriedade é um direito subjetivo acompanhado de
uma função social. A própria Constituição deixa evidente tal conformação do
direito (artigo 5º, XXII e XXIII; 170, II e III). Não há incompatibilidade
entre o direito e função social da propriedade, embora
acenem para direções opostas. O caráter dúplice da propriedade – servir ao
individualismo lismo e às necessidades sociais – exige uma compatibilização
entre as duas naturezas (TAVARES, 2003, p. 479). Ao mesmo tempo em que o
direito individual é garantido, existe uma função a ser positivamente cumprida,
de forma que o direito de propriedade deve ser exercido sem se desviar de sua
função. O direito de propriedade é um poder-dever do proprietário.
É importante notar que as limitações e as funções sociais impõem
restrições ao uso da propriedade de forma a delinear o próprio direito. Em
outras palavras, as limitações e funções não alteram o direito de propriedade.
Em verdade, dão o contorno jurídico do direito, conforme ensina Celso Antônio
Bandeira de Mello (1987, p.39):
as limitações ou sujeições de poderes do proprietário
impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos
pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário,
consistem na própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste
modo, lhe desenham os contornos.
GRAU, Eros Roberto. A
propriedade rural e a função social da propriedade. Revista Trimestral de
Direito Público, vol. 33. São Paulo, Malheiros, 2001
MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. São Paulo: Saraiva, 1997.