sexta-feira, 28 de abril de 2017

DIREITO DE PROPRIEDADE – LIMITAÇÕES E FUNÇÃO SOCIAL


DIREITO DE PROPRIEDADE – LIMITAÇÕES E FUNÇÃO SOCIAL

RONALDO GERD SEIFERT
Advogado, Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Pós-graduado em Direito Contratual pela PUC-SP.
http://lattes.cnpq.br/8895137732316980

Este breve texto busca traçar os contornos do direito de propriedade sob a perspectiva das limitações e função social.
O direito de propriedade, nos moldes romanos, era protegido como direito absoluto, exclusivo e perpétuo (MALUF, 1997, p.11). Absoluto, visto que as faculdades dela inerentes não encontram limites. Exclusivo, porque sobre um mesmo bem não há duas propriedades. Perpétuo porque o direito de propriedade não possui termo. Na idade moderna, o regime do direito de propriedade garantia ao proprietário poderes quase absolutos, quase plenos poderes de uso, gozo e disposição sobre o bem. Não há de se falar em direitos absolutos e ilimitados sequer no auge do liberalismo iluminista. Na própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 4º, já trazia alguma limitação aos direitos mais sagrados: “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limite senão os que asseguram aos outros membros os mesmo direitos [...]”. O caráter absoluto da propriedade perdeu sua robustez pelo desenvolvimento da teoria do abuso de direito, pelas limitações negativas e imposições positivas, deveres e ônus, até a noção de função social da propriedade (SILVA, 2006, p.72).
Em nosso ordenamento, a propriedade mantém caracteres clássicos, porém, sob uma perspectiva social. As intervenções legais sobre o âmbito da propriedade dão um novo contorno ao direito.
No Brasil, a ilicitude quanto ao abuso de direito é expressamente regulada pelo artigo 187 do Código Civil. Em relação à propriedade, o abuso de direito é proibido nos termos do § 2º do artigo 1.228 do diploma civil. Por fim, é proibido o uso nocivo ou que não gere qualquer benefício ao seu titular.
Quanto às limitações, há inúmeras que delineiam o direito de propriedade em nosso ordenamento jurídico. As limitações podem ser de caráter civil ou público. As primeiras visam coordenar as relações privadas. Já as limitações públicas estão fundamentadas na proteção de interesses da coletividade.
Cunha Gonçalves, nas palavras de Carlos Maluf (1997, p. 47), classifica as limitações em
a) limitações de interesse público ou geral, ou de utilidade pública, as quais são destinadas a impedir que o interesse, o arbítrio ou o egoísmo do proprietário prevaleça em absoluto sobre os interesses da coletividade; b) limitações de interesse privado, que visam a conciliar os interesses de proprietários com os de outros particulares; e que se subdividem em limitações de mero interesse privado e limitações de interesse semipúblico, como as que têm por fim tornar menos áspera e conflituosas as relações entre vizinhos e proteger a utilidade comum dos prédios contíguos.
Hely Lopes Meirelles (2006, p. 515) assinala a diferença entre limitações civis e limitações urbanísticas na propriedade urbana:
as restrições civis amparam os vizinhos, reciprocamente considerados em suas relações individuais; as limitações urbanísticas protegem a coletividade na sua generalidade. Umas e outras condicionam o uso da propriedade, restringem direitos individuais, coartam atividades particulares, tolhem a liberdade de construção, mas em nome de interesses diferentes.


Quanto às limitações de caráter público, seu fundamento é a solidariedade social (DROMI, 1995, p. 582).
As limitações administrativas podem ser em sentido amplo e estrito, sendo a primeira decorrente diretamente de lei (limitação legislativa) e a segunda do “poder de polícia” (limitação executiva)[1]. As limitações legislativas são gerais, impositivas, imprescritíveis, irrenunciáveis, intransacionáveis e não geram direito à indenização.
A proteção ao direito de propriedade é garantida constitucionalmente como direito fundamental e individual (artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal). Ademais, tal proteção se acentua na medida em que o direito de propriedade é princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso II, da Constituição Federal), tendo, inclusive, primordial valor em um dos fundamentos do Estado, qual seja livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal).
As limitações administrativas devem decorrer de lei, sob pena de serem inconstitucionais. É o que advém do inciso II do artigo 5º da Constituição. Mesmo havendo a possibilidade de limitação à propriedade, inegável é que o direito de propriedade possui no ordenamento uma proteção jurídica especial. O interesse individual do proprietário é minimamente garantido de forma intocável. Sequer mediante lei é possível retirar o conteúdo mínimo da propriedade, pois, se assim fosse, redundaria no esvaziamento ou inutilização do preceito constitucional. Em todo o direito de propriedade, como nos ensina o professor Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p. 42), há de existir uma possibilidade mínima de usar, gozar e dispor do bem, “pois é o plexo desses poderes de uso, gozo e disposição que, em sua unidade, recebe o nome de direito de propriedade. Elididos esses poderes, nada mais restaria”.
Além das limitações, outro instituto que rompe com o caráter absoluto da propriedade é a função social da propriedade.
Não são traçadas diferenças essenciais entre os limitações e função social, pois a doutrina apresenta pouca uniformidade nesse sentido. A respeito das divergências doutrinárias, basta notar que Eros Grau entende que limitações administrativas apenas geram obrigações de não fazer (GRAU, 2001, p. 42). Lúcia Valle Figueiredo entende que além de obrigações de não fazer, há possibilidade de se criar obrigações de fazer, citando exemplos em que a obrigação de fazer não se confunde com a utilidade essencial do bem (FIGUEIREDO, 2005, p. 27). Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a norma do § 4º do artigo 182 da Constituição é exemplo de obrigação positiva de “poder de polícia”, obrigação esta que se refere à utilidade principal ou essencial do bem (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 781).
A Constituição de 1988, conhecida pelo seu caráter social, regulou a função social da propriedade nos artigos 5º, XXIII, dentro da concepção de direitos fundamentais; artigo 170, III, como princípio da ordem econômica; artigo 182, § 2º, dentro da política urbana e; artigo 186, referente à política agrícola. Como se pode observar, a função social em nossa Constituição foi tratada com amplitudes diferentes em cada um dos dispositivos. Embora em diversidade de tratamento, cada preceito exala a normatividade da função social de forma harmônica e ordenada. Em decorrência da unidade coerente da Constituição, a noção de função social em nosso ordenamento é una.
Pelo inciso III do artigo 170, fica evidente que a função social da propriedade é um princípio cujos valores se irradiam sobre todos os instrumentos jurídicos, institutos e normas referentes à propriedade, isto é, em todo o regime de propriedade no Brasil.
Conforme ensina José Diniz Moraes (1999, p. 73), em relação ao inciso XXIII do artigo 5º, o princípio irradia seus efeitos
em dois sentidos diversos: garante ao proprietário a inviolabilidade do seu domínio quando a satisfaz, impedindo que o legislador ou administrador público empreendam disciplina e atividade diversa, sob o mesmo fundamento; garante aos interessados (particulares, administradores, legisladores, magistrados) medidas idôneas a combater atos incompatíveis com o fundamento da atribuição do domínio, ou em razão dele, quando não atingido o princípio da função social da propriedade.


Traçados os ditames essenciais dos dois dispositivos constitucionais mais genéricos do princípio da função social da propriedade, insta enfrentar conceitualmente os valores e a essência da norma principiológica. Em primeiro lugar, deve-se enfrentar o termo função. Santi Romano, em Principii di diritto costituzionale generale, ensina que “as funções (offIicia, munera) são os poderes que se exercem não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de outrem ou por um interesse objetivo” (apud GRAU, 2001, p. 33). No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello assinala: “existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las” (BANDEIRA DE MALLO, 2006, p. 60). Carlos Ari Sundfeld ensina que função “é o poder de agir cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente” (SUNDFELD, 1996, p. 156 ).
Passando à noção de função social da propriedade, Ana Prata (p. 174), em um conceito analítico, entende que é prioritariamente “meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais justas, de promover a igualdade real e de obter um aumento de riqueza socialmente útil e a sua distribuição em termos equitativos”.
Outra conceituação analítica, agora, de Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p 43), é que função social de propriedade
consiste em que ela deva cumprir um destino economicamente útil, produtivo, de maneira a satisfazer as necessidades sociais preenchíveis pela espécie tipológica do bem (ou pelo menos não poderá ser utilizada de modo a contraditar estes interesses), cumprindo, destarte, às completas, sua vocação natural, de modo a canalizar as potencialidades residentes no bem em proveito da coletividade (ou, pelo menos, não poderá ser utilizada de modo a adversá-las).

Eros Grau (2001, p. 42) ensina que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário
o dever de exercer a propriedade em benefício de outrem e não apenas o de não exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente de não-fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.


A função social determina fins aos bens que atendam aos interesses da sociedade. Retira do direito o caráter essencialmente egoístico, passando a contextualizá-lo aos interesses sociais. O interesse público representado na função social é fundamento de obrigações de fazer do proprietário. Assim, a função social da propriedade se manifesta como dever do proprietário[2]. Esse dever não aniquila o seu direito subjetivo. Nem poderia assim fazer diante da importância constitucional consagrada à propriedade privada que garante ao proprietário o exercício do uso, fruição e disposição do bem em conformidade aos seus interesses.
A inter-relação entre poder e dever do proprietário “é expressão de uma fórmula ambígua, na qual se exprime a contradição dogmática de inserir no conceito de direito subjetivo de função, que supõe obrigação e ônus” (GRAU, 1983, p. 69). O poder e o dever componentes do direito de propriedade agem em harmonia, de forma que o dever não retire do proprietário o uso ou gozo que sirva aos seus interesses e, por outro lado, de forma que o poder não aflija os interesses sociais.
Portanto, o direito de propriedade é um direito subjetivo acompanhado de uma função social. A própria Constituição deixa evidente tal conformação do direito (artigo 5º, XXII e XXIII; 170, II e III). Não há incompatibilidade entre o direito e função social da propriedade, embora acenem para direções opostas. O caráter dúplice da propriedade – servir ao individualismo lismo e às necessidades sociais – exige uma compatibilização entre as duas naturezas (TAVARES, 2003, p. 479). Ao mesmo tempo em que o direito individual é garantido, existe uma função a ser positivamente cumprida, de forma que o direito de propriedade deve ser exercido sem se desviar de sua função. O direito de propriedade é um poder-dever do proprietário.
É importante notar que as limitações e as funções sociais impõem restrições ao uso da propriedade de forma a delinear o próprio direito. Em outras palavras, as limitações e funções não alteram o direito de propriedade. Em verdade, dão o contorno jurídico do direito, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p.39):
as limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem na própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe desenham os contornos[3].

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, vol. 84. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 2006.

DROMI, Roberto. Derecho administrativo. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005.

GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.

GRAU, Eros Roberto. A propriedade rural e a função social da propriedade. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 33. São Paulo, Malheiros, 2001

MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. São Paulo: Saraiva, 1997.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999.

PRATA, Ana. A tutela da autonomia privada. Lisboa: Almedina, [s.d.].

SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2003.





[1] A respeito das diferenças entre limitações administrativas em sentido amplo e em sentido específico, é de grande valia a obra de Luís Manuel Fonseca Pires. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 127 e 128.
[2] “Quem cumpre ou deve cumprir a função embutida na propriedade – isto é, no direito subjetivo – de que é titular é o proprietário da coisa”. GRAU, 1983, p. 70.
[3] BANDEIRA DE MELLO, 1987, p. 39.