terça-feira, 19 de maio de 2015

DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM REDUÇÃO DE TEXTO E INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS TÉCNICAS DE DECISÃO

Por vezes, o Supremo Tribunal Federal pode afigurar necessária a adoção de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, isto é, uma técnica de decisão que, sem proceder à alteração de seu texto normativo, somente considera inconstitucional uma determinada lei se aplicada a uma dada hipótese. Para Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.1253), a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto deve ser utilizada para realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional. Além disso, essa fórmula é dotada de maior clareza e segurança jurídica, o que vem expressa na parte dispositiva da decisão. Assim, por exemplo, a lei X é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em determinado exercício financeiro[1]. Ora, a partir dessas premissas, infere-se, novamente com Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.1253), que na declaração de inconstitucionalidade (nulidade) sem redução de texto, determinadas hipóteses de aplicação, constantes de programas normativos da lei, são inconstitucionais e, por isso, nulas.  
Não se mostra despiciendo registrar que o instituto em tela (declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto), embora similar, não se confunde com um outro princípio hermenêutico denominado de interpretação conforme a Constituição. O próprio Supremo Tribunal Federal, embora já tenha equiparado ambas as figuras[2], parece caminhar rumo à diferenciação de cada uma das modalidades, como se pode observar na decisão proferida na medida liminar da ADI 491. A ação envolvia a discussão sobre a constitucionalidade do art. 86, parágrafo único, da Constituição do Estado do Amazonas, assim estatuído:

Art. 86. Lei Orgânica, de iniciativa facultativa do Procurador-Geral de Justiça, disporá sobre a organização e o funcionamento do Ministério Público, observando em relação aos seus membros:
Parágrafo único: Aplicam-se, no que couber, aos membros do Ministério Público os princípios estabelecidos no art. 64, I, II e IV a XIII, desta Constituição.

Já o artigo 64 da Constituição estadual, assim referida na disposição legal impugnada, consigna:

Art. 64. A Magistratura Estadual terá o seu regime jurídico estabelecido no Estatuto da Magistratura instituído por lei complementar de iniciativa do Tribunal de Justiça, observados os seguintes princípios:
V – os vencimentos dos magistrados serão fixados com diferença não superior a dez por cento de uma para outra das categorias da carreira, não podendo, a título nenhum, exceder os dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. 

O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer que a inconstitucionalidade arguida quanto ao parágrafo único do artigo 86 da Constituição do Estado do Amazonas visava apenas à extensão, que ele determina, implicitamente, que se faça ao Ministério Público, do inciso V do artigo 64, já que essa extensão decorre dos termos “IV a XIII” que integram a remissão feita pelo primeiro dispositivo, utilizou a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto para suspender a aplicação do parágrafo único do art. 86 da Constituição estadual no que se refere à remissão ao inciso V do artigo 64 dela constante. Ora, como a remissão ao inciso V era inconstitucional, não havia, logicamente, possibilidade de “riscar” a referência a esse inciso, já que o modo como a norma em comento fora redigida não dava espaço para esse tipo de procedimento (MENDES, 2008, p.1254; TAVARES, 2012, p.293).
De fato, não há como confundir as duas modalidades que se põem sob análise. A fórmula hermenêutica da interpretação conforme[3], de matriz germânica, pretende revigorar a presunção relativa de constitucionalidade das leis e atos normativos expedidos pelo poder público. De modo que, de tantas interpretações possíveis do ato impugnado em face da inexorável plurivocidade sígnica da norma, deve-se admitir aquela que permite adequá-lo à Constituição, ou seja, deve-se adotar aquela que se revele compatível com a Constituição (CUNHA JÚNIOR, 2009, p.370; MENDES, 2008, p.1251). Estamos, portanto, com Lenio Luiz Streck (2004, p.612), quem, analisando o caso Português, onde as duas categorias são bem definidas, aduz que a interpretação conforme ocorre quando uma norma anteriormente reputada inconstitucional é considerada constitucional pelo Tribunal Constitucional, contanto que ela seja interpretada num sentido conforme a Constituição (interpretação adequadora). Já na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, declara-se inconstitucional um certo segmento ou secção da norma questionada. Enfim, “enquanto na nulidade parcial [...] declaram-se determinados ‘casos de aplicação’ como incompatíveis, na interpretação conforme à Constituição declaram-se determinadas ‘possibilidades de interpretação’ como compatíveis” (HECK, 1994, p.131). Também nesse sentido Mendes afirma que:

[...] enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. (MENDES, 2008, p.1.251)

Nesse passo, Rui Medeiros destaca, em síntese perfeita, que:

[...] enquanto na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (qualitativa) as diferentes normas que se extraem da disposição podem operar contemporaneamente, pois regulam fattispecie diversas ou determinam efeitos independentes, já na interpretação conforme a Constituição as diferentes normas que resultam das interpretações contrastantes estão destinadas a operar alternativamente. (apud STRECK, 2004, p.612-613)

Ademais, não se pode perder de vista que a própria redação do parágrafo único do artigo 28 da Lei n. 9.868/99 corrobora o tratamento distinto que se deve dar às duas figuras, quando dispõe que “a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”[4].

Professor Tutor Mateus Pieroni Santini

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3.ed. Salvador: Juspodivm, 2009.
HECK, Luís Afonso. O Recurso Constitucional na Sistemática Jurisdicional Constitucional alemã. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, ano 31, n. 124, out./dez. 1994.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.



[1] A propósito, essa orientação ficou sumulada no enunciado 67 do STF, segundo o qual”é inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou enumerado no mesmo exercício financeiro”.
[2] No julgamento da ADI 1371-8/DF, de relatoria do Min. Néri da Silveira, o Supremo Tribunal Federal, perfilhando a tese da unidade conceitual de ambos os institutos, “julgou parcialmente procedente a ação direta, para sem redução de texto, (a) dar, ao artigo 237, inciso V, da LOMIN (LC 75/93), interpretação conforme à Constituição, no sentido de que a filiação partidária de membros do Ministério Público da União somente pode efetivar-se nas hipóteses de afastamento de suas funções institucionais, mediante licença, nos termos da lei, e (b) dar, ao art. 80 da LC 75, interpretação conforme à Constituição, para fixar como única exegese constitucionalmente possível aquela que apenas admite a filiação partidária, se o membro do Ministério Público estiver afastado de suas funções institucionais, devendo cancelar sua filiação partidária antes de reassumir suas funções, quaisquer que sejam, não podendo, ainda, desempenhar funções pertinentes ao Ministério Público Eleitoral senão após o cancelamento dessa mesma filiação político-partidária”.
[3] O Supremo Tribunal Federal faz importante reflexão acerca dos limites da “interpretação conforme à Constituição”. Fazendo remissão aos julgados da Corte, Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.1.255) afirma que esses limites emergem tanto da expressão literal da lei quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição só poderia ser admitida se não consubstanciar prática que viole a expressão literal do texto e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador. 
[4] “Alguns autores entendem que não há diferenças sensíveis entre a interpretação conforme a Constituição e a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Wassilios Skouris, por exemplo, comunga dessa tese, dizendo que a similitude exsurge quando se observa que a interpretação conforme, na acepção usualmente utilizada, envolve, no seu lado negativo, a rejeição de uma decisão (inconstitucional) da lei, não sendo possível nem necessária uma distinção razoável entre os dois tipos de decisão.” (STRECK, 2004, p.612)