Por vezes, o Supremo Tribunal Federal pode afigurar necessária a adoção
de uma declaração de
inconstitucionalidade sem redução de texto, isto é, uma técnica de decisão
que, sem proceder à alteração de seu texto normativo, somente considera
inconstitucional uma determinada lei se aplicada a uma dada hipótese. Para Gilmar
Ferreira Mendes (2008, p.1253), a declaração de inconstitucionalidade sem
redução de texto deve ser utilizada para realçar que determinada aplicação do
texto normativo é inconstitucional. Além disso, essa fórmula é dotada de maior
clareza e segurança jurídica, o que vem expressa na parte dispositiva da
decisão. Assim, por exemplo, a lei X é inconstitucional se aplicável a tal
hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em
determinado exercício financeiro[1].
Ora, a partir dessas premissas, infere-se, novamente com Gilmar Ferreira Mendes
(2008, p.1253), que na declaração de inconstitucionalidade (nulidade) sem
redução de texto, determinadas hipóteses de aplicação, constantes de programas
normativos da lei, são inconstitucionais e, por isso, nulas.
Não se mostra despiciendo registrar que o instituto em tela (declaração
de inconstitucionalidade sem redução de texto), embora similar, não se confunde
com um outro princípio hermenêutico denominado de interpretação conforme a Constituição. O próprio Supremo Tribunal
Federal, embora já tenha equiparado ambas as figuras[2],
parece caminhar rumo à diferenciação de cada uma das modalidades, como se pode
observar na decisão proferida na medida liminar da ADI 491. A ação envolvia a
discussão sobre a constitucionalidade do art. 86, parágrafo único, da
Constituição do Estado do Amazonas, assim estatuído:
Art.
86. Lei Orgânica, de iniciativa facultativa do Procurador-Geral de Justiça,
disporá sobre a organização e o funcionamento do Ministério Público, observando
em relação aos seus membros:
Parágrafo
único: Aplicam-se, no que couber, aos membros do Ministério Público os
princípios estabelecidos no art. 64, I, II e IV a XIII, desta Constituição.
Já o artigo 64 da Constituição estadual, assim referida na disposição
legal impugnada, consigna:
Art.
64. A Magistratura Estadual terá o seu regime jurídico estabelecido no Estatuto
da Magistratura instituído por lei complementar de iniciativa do Tribunal de
Justiça, observados os seguintes princípios:
V
– os vencimentos dos magistrados serão fixados com diferença não superior a dez
por cento de uma para outra das categorias da carreira, não podendo, a título
nenhum, exceder os dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer que a inconstitucionalidade
arguida quanto ao parágrafo único do artigo 86 da Constituição do Estado do
Amazonas visava apenas à extensão, que ele determina, implicitamente, que se
faça ao Ministério Público, do inciso V do artigo 64, já que essa extensão
decorre dos termos “IV a XIII” que integram a remissão feita pelo primeiro
dispositivo, utilizou a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem
redução de texto para suspender a aplicação do parágrafo único do art. 86 da
Constituição estadual no que se refere à remissão ao inciso V do artigo 64 dela
constante. Ora, como a remissão ao inciso V era inconstitucional, não havia,
logicamente, possibilidade de “riscar” a referência a esse inciso, já que o
modo como a norma em comento fora redigida não dava espaço para esse tipo de
procedimento (MENDES, 2008, p.1254; TAVARES, 2012, p.293).
De fato, não há como confundir as duas modalidades que se põem sob
análise. A fórmula hermenêutica da interpretação conforme[3],
de matriz germânica, pretende revigorar a presunção relativa de
constitucionalidade das leis e atos normativos expedidos pelo poder público. De
modo que, de tantas interpretações possíveis do ato impugnado em face da
inexorável plurivocidade sígnica da norma, deve-se admitir aquela que permite
adequá-lo à Constituição, ou seja, deve-se adotar aquela que se revele
compatível com a Constituição (CUNHA JÚNIOR, 2009, p.370; MENDES, 2008,
p.1251). Estamos, portanto, com Lenio Luiz Streck (2004, p.612), quem,
analisando o caso Português, onde as duas categorias são bem definidas, aduz
que a interpretação conforme ocorre quando uma norma anteriormente reputada
inconstitucional é considerada constitucional pelo Tribunal Constitucional,
contanto que ela seja interpretada num sentido conforme a Constituição
(interpretação adequadora). Já na inconstitucionalidade parcial sem redução de
texto, declara-se inconstitucional um certo segmento ou secção da norma
questionada. Enfim, “enquanto na nulidade parcial [...] declaram-se
determinados ‘casos de aplicação’ como incompatíveis, na interpretação conforme
à Constituição declaram-se determinadas ‘possibilidades de interpretação’ como
compatíveis” (HECK, 1994, p.131). Também nesse sentido Mendes afirma que:
[...]
enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a
declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é
conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão,
por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses
de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do
texto legal. (MENDES, 2008, p.1.251)
Nesse passo, Rui Medeiros destaca, em síntese perfeita, que:
[...]
enquanto na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (qualitativa) as
diferentes normas que se extraem da disposição podem operar contemporaneamente,
pois regulam fattispecie diversas ou
determinam efeitos independentes, já na interpretação conforme a Constituição
as diferentes normas que resultam das interpretações contrastantes estão
destinadas a operar alternativamente. (apud
STRECK, 2004, p.612-613)
Ademais, não se pode perder de vista que a própria redação do parágrafo
único do artigo 28 da Lei n. 9.868/99 corrobora o tratamento distinto que se
deve dar às duas figuras, quando dispõe que “a declaração de
constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem
redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos
órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e
municipal”[4].
Professor
Tutor Mateus Pieroni Santini
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3.ed. Salvador: Juspodivm, 2009.
HECK, Luís
Afonso. O Recurso Constitucional na Sistemática Jurisdicional Constitucional
alemã. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, Senado Federal, ano 31, n. 124, out./dez. 1994.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de direito
constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica:
uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TAVARES, André
Ramos. Curso de
direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva,
2012.
[1] A
propósito, essa orientação ficou sumulada no enunciado 67 do STF, segundo o
qual”é inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou
enumerado no mesmo exercício financeiro”.
[2] No
julgamento da ADI 1371-8/DF, de relatoria do Min. Néri da Silveira, o Supremo
Tribunal Federal, perfilhando a tese da unidade conceitual de ambos os
institutos, “julgou parcialmente procedente a ação direta, para sem redução de
texto, (a) dar, ao artigo 237, inciso V, da LOMIN (LC 75/93), interpretação
conforme à Constituição, no sentido de que a filiação partidária de membros do
Ministério Público da União somente pode efetivar-se nas hipóteses de
afastamento de suas funções institucionais, mediante licença, nos termos da
lei, e (b) dar, ao art. 80 da LC 75, interpretação conforme à Constituição,
para fixar como única exegese constitucionalmente possível aquela que apenas
admite a filiação partidária, se o membro do Ministério Público estiver
afastado de suas funções institucionais, devendo cancelar sua filiação
partidária antes de reassumir suas funções, quaisquer que sejam, não podendo,
ainda, desempenhar funções pertinentes ao Ministério Público Eleitoral senão
após o cancelamento dessa mesma filiação político-partidária”.
[3] O
Supremo Tribunal Federal faz importante reflexão acerca dos limites da
“interpretação conforme à Constituição”. Fazendo remissão aos julgados da
Corte, Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.1.255) afirma que esses limites emergem
tanto da expressão literal da lei quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição só
poderia ser admitida se não consubstanciar prática que viole a expressão
literal do texto e não alterar o significado do texto normativo, com mudança
radical da própria concepção original do legislador.
[4]
“Alguns autores entendem que não há diferenças sensíveis entre a interpretação
conforme a Constituição e a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.
Wassilios Skouris, por exemplo, comunga dessa tese, dizendo que a similitude
exsurge quando se observa que a interpretação conforme, na acepção usualmente
utilizada, envolve, no seu lado negativo, a rejeição de uma decisão
(inconstitucional) da lei, não sendo possível nem necessária uma distinção
razoável entre os dois tipos de decisão.” (STRECK, 2004, p.612)