segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: UMA VISÃO DAS CONSTITUÇÕES BRASILEIRAS

         Como ocorreu em outras nações, entre nós, a responsabilidade estatal evoluiu seguindo-se quase um padrão mundial, ou seja, partindo da total irresponsabilidade do governante para a adoção da teoria objetiva.
Antes da época imperial, seguíamos as ordenações. Na nossa fase imperial, a responsabilidade do Estado era reconhecida em leis e decretos especiais, a despeito de inexistir qualquer mandamento geral que dava guarida. A Carta Imperial de 1824 previa no nº 29, do seu artigo 179, a obrigação reparatória dos empregados públicos pelos abusos e omissões realizados no exercício de suas atribuições, exceto no que fazia deferência ao Imperador. Este desfrutava do tratamento distintivo da irresponsabilidade, conforme rezava o artigo 99. Na época imperial, existia a concepção de que o Estado respondia solidariamente aos atos de seus empregados.
Já a Carta Republicana de 1891, em seu artigo 82[1], da mesma forma, firmava a responsabilidade dos agentes públicos pelos abusos e omissões praticados no empreendimento de suas prerrogativas ou quando fossem condescendentes com seus subordinados. Não era proibida a solidariedade do Estado na reparação do prejuízo. Marchando a par com o mandamento constitucional acima, existiam leis e decretos que exprimiam a responsabilidade estatal por atos danosos obrados por seus empregados.
A nossa Constituição de 1946[2] admitiu manifestamente a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, diferençando, para propósito de ressarcimento, o prejuízo produzido pelo funcionário público, dos prejuízos originados por atos de terceiros ou por fatos da natureza.[3]
Da mesma forma, no artigo 105 da Constituição de 1967 e no artigo 107 da Carta subsequente de 1969, adotavam da teoria da responsabilidade objetiva, dilatando, contudo, a qualidade da pessoa jurídica responsável, que tinha diminuído a sua extensão nas Cartas Políticas pretéritas, aferindo apenas às pessoas de direito público. O mandamento da emenda constitucional repetia dos dizeres o artigo 105 da revogada Carta.[4]
A redação da carta acima é semelhante ao extremo com o texto da Carta de 1946, só havendo a exclusão do termo interno, que era adjetivo das pessoas de direito público.[5]
Já sob o império da promulgada Constituição cidadã, o legislador preferiu deixar explícito o que, nos textos anteriores, figurava de forma subentendida, abrangendo-se na obrigação indenizatória do Estado as ações das pessoas que exerçam funções delegadas, mesmo que de personalidade privada, sob forma de entidades paraestatais, ou de empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. É o que dispõe o § 6º, do artigo 37:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]
§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos de seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa.

Desta forma, a Constituição Cidadã exalta o princípio da responsabilidade objetiva da Administração Pública pelos danos causados por seus funcionários, quando agindo nessa qualidade. A regra incluiu igualmente as pessoas de direito privado, que são prestadoras de serviços públicos. Contudo, da mesma forma como afirmavam as Leis anteriores, fixou o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Assim, ratificou prudentemente, a direção doutrinária e jurisprudencial tomada pelos juristas, seguindo a orientação da norma da responsabilidade sem culpa do Estado sob a modalidade do risco administrativo.
É necessário demonstrar que o Código Civil de 1916 decidiu abraçar a teoria subjetiva, que era preponderante naquele período, estabelecendo em seu artigo 15 a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, tendo como antecedente a culpa da Administração Pública.[6]
Assim, o legislador do início do século, não fala em indenização somente dos atos praticados pelos funcionários, mas também tinha planos no sentido da reparação dos prejuízos causados em decorrência de omissões dos mesmos. Tendo, assim, a responsabilização tanto por atos comissos e omissos executados pelos agentes administrativos.
Antes de atacar a legislação civil, devemos ponderar o que Código Civil brasileiro, entre as outras muitas qualidades que detém, distingue-se pelo apuro da técnica e correção da linguagem. Afinal de contas, oito décadas de aplicação ininterrupta corroboram a qualificação intelectual dos seus redatores.
Entretanto, entendem muitos juristas existir indeterminação e difusão do texto legislativo, existindo, assim, a possibilidade de aplicação da teoria do risco. É o que afirma o saudoso Hely Lopes Meirelles, conforme transladamos:

Realmente, não se pode equiparar o Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil.[7]

Neste mesmo sentido, assevera o desembargador Yussef Said Cahali, criticando ao defender a aplicação das regras civilísticas à responsabilidade do estado:

O pressuposto da culpa, como condição da responsabilidade civil do Estado, acabou se definindo com injustificável pela melhor doutrina; em especial naqueles casos em que o conceito de culpa civilística, por si ambíguo, já não bastava para explicar o dano que teria resultado de falha da máquina administrativa, de culpa anônima da Administração, buscando-se, então, supri-la através da concepção de uma culpa publicística.[8]

Decorre desta assertiva que este artigo da lei civil pátria, no que tange a atividades omissivas dos funcionários públicos ou legalmente assemelhados, não foi revogado nem pelo artigo 197 da Constituição de 1946, nem pelo artigo 107 da Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, nem, muito menos, pelo § 6º do artigo 37 da atual Carta, sendo, portanto, recepcionado por todas. Porém, existe somente a derrogação da lei civil quando se trata dos atos comissivos.
O mais interessante é que existe enorme divergência interpretativa daquele artigo. O que era de se esperar, pois a lei data do início do século, e as legislações maiores que sobrevieram não se atentaram para o fato de sua revogação parcial. Para as missões dos agentes inexiste entre nós a responsabilidade objetiva em face da vigência desta parte do artigo 15. A jurisprudência caminha sem firmeza, visto que a culpa foi exigida pelo legislador antepassado, uma contundente demonstração da teoria da responsabilidade subjetiva da culpa administrativa, que subsiste ainda hoje com a teoria da responsabilidade objetiva do risco administrativo. É uma verdadeira aberração jurídica: um rosto de 1916 e um corpo de uma adolescente.
O atual Código Civil, datado de 10 de janeiro de 2002, continuou com a mesma ideia do antecessor, mantendo as pessoas de direito público interno no campo civil, conforme já foi discutido, apenas excluindo a responsabilidade da pessoa jurídica no caso de culpa lato sensu de seu agente.[9]

Professor Tutor Dr. Cildo Giolo Júnior

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1891). Constituição Política do Império do Brazil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1967-69). Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67EMC69.htm. Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos.  Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 03out. 2015.
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
MEIRELLES,Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.




[1] “Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. Parágrafo único - O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus deveres legais.”
[2] “Art 194 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.”
[3] “Muitos doutrinadores brasileiros defendem o entendimento de que o artigo 194 desta Constituição revogou de forma tácita o artigo 15 do Código Civil, ao substituir o princípio de culpa, pela teoria que fundamenta a obrigação do Estado no nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a atividade pública que o provocou.”ÉlcioTrujillo, Responsabilidade do estado por ato ilícito, p.103.
[4] “Artigo 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
[5] “Artigo 194. As pessoas jurídicas de direito público interno responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
[6] “Art. 15 - As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.”
[7]Direito Administrativo brasileiro, p. 556.
[8]Responsabilidade civil do Estado, p. 22.
[9] “Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.”