Como ocorreu em
outras nações, entre nós, a responsabilidade estatal evoluiu seguindo-se quase
um padrão mundial, ou seja, partindo da total irresponsabilidade do governante
para a adoção da teoria objetiva.
Antes da época
imperial, seguíamos as ordenações. Na nossa fase imperial, a responsabilidade
do Estado era reconhecida em leis e decretos especiais, a despeito de inexistir
qualquer mandamento geral que dava guarida. A Carta Imperial de 1824 previa no
nº 29, do seu artigo 179, a obrigação reparatória dos empregados públicos pelos
abusos e omissões realizados no exercício de suas atribuições, exceto no que
fazia deferência ao Imperador. Este desfrutava do tratamento distintivo da
irresponsabilidade, conforme rezava o artigo 99. Na época imperial, existia a
concepção de que o Estado respondia solidariamente aos atos de seus empregados.
Já a Carta
Republicana de 1891, em seu artigo 82[1],
da mesma forma, firmava a responsabilidade dos agentes públicos pelos abusos e
omissões praticados no empreendimento de suas prerrogativas ou quando fossem
condescendentes com seus subordinados. Não era proibida a solidariedade do
Estado na reparação do prejuízo. Marchando a par com o mandamento
constitucional acima, existiam leis e decretos que exprimiam a responsabilidade
estatal por atos danosos obrados por seus empregados.
A nossa
Constituição de 1946[2]
admitiu manifestamente a teoria da responsabilidade objetiva do Estado,
diferençando, para propósito de ressarcimento, o prejuízo produzido pelo
funcionário público, dos prejuízos originados por atos de terceiros ou por
fatos da natureza.[3]
Da mesma forma,
no artigo 105 da Constituição de 1967 e no artigo 107 da Carta subsequente de
1969, adotavam da teoria da responsabilidade objetiva, dilatando, contudo, a
qualidade da pessoa jurídica responsável, que tinha diminuído a sua extensão
nas Cartas Políticas pretéritas, aferindo apenas às pessoas de direito público.
O mandamento da emenda constitucional repetia dos dizeres o artigo 105 da
revogada Carta.[4]
A redação da
carta acima é semelhante ao extremo com o texto da Carta de 1946, só havendo a
exclusão do termo interno, que era adjetivo das pessoas de direito público.[5]
Já sob o
império da promulgada Constituição cidadã, o legislador preferiu deixar
explícito o que, nos textos anteriores, figurava de forma subentendida,
abrangendo-se na obrigação indenizatória do Estado as ações das pessoas que
exerçam funções delegadas, mesmo que de personalidade privada, sob forma de
entidades paraestatais, ou de empresas concessionárias ou permissionárias de
serviços públicos. É o que dispõe o § 6º, do artigo 37:
Art. 37. A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
§ 6º. As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos de seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando
o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa.
Desta forma, a
Constituição Cidadã exalta o princípio da responsabilidade objetiva da
Administração Pública pelos danos causados por seus funcionários, quando agindo
nessa qualidade. A regra incluiu igualmente as pessoas de direito privado, que
são prestadoras de serviços públicos. Contudo, da mesma forma como afirmavam as
Leis anteriores, fixou o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo ou culpa. Assim, ratificou prudentemente, a direção doutrinária e
jurisprudencial tomada pelos juristas, seguindo a orientação da norma da
responsabilidade sem culpa do Estado sob a modalidade do risco administrativo.
É necessário
demonstrar que o Código Civil de 1916 decidiu abraçar a teoria subjetiva, que
era preponderante naquele período, estabelecendo em seu artigo 15 a
responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, tendo como
antecedente a culpa da Administração Pública.[6]
Assim, o
legislador do início do século, não fala em indenização somente dos atos
praticados pelos funcionários, mas também tinha planos no sentido da reparação
dos prejuízos causados em decorrência de omissões dos mesmos. Tendo, assim, a
responsabilização tanto por atos comissos e omissos executados pelos agentes
administrativos.
Antes de atacar
a legislação civil, devemos ponderar o que Código Civil brasileiro, entre as
outras muitas qualidades que detém, distingue-se pelo apuro da técnica e
correção da linguagem. Afinal de contas, oito décadas de aplicação ininterrupta
corroboram a qualificação intelectual dos seus redatores.
Entretanto,
entendem muitos juristas existir indeterminação e difusão do texto legislativo,
existindo, assim, a possibilidade de aplicação da teoria do risco. É o que
afirma o saudoso Hely Lopes Meirelles, conforme transladamos:
Realmente, não se pode equiparar o
Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular,
despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso,
inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil.[7]
Neste mesmo
sentido, assevera o desembargador Yussef Said Cahali, criticando ao defender a
aplicação das regras civilísticas à responsabilidade do estado:
O pressuposto da culpa, como condição
da responsabilidade civil do Estado, acabou se definindo com injustificável
pela melhor doutrina; em especial naqueles casos em que o conceito de culpa
civilística, por si ambíguo, já não bastava para explicar o dano que teria
resultado de falha da máquina administrativa, de culpa anônima da
Administração, buscando-se, então, supri-la através da concepção de uma culpa
publicística.[8]
Decorre desta
assertiva que este artigo da lei civil pátria, no que tange a atividades
omissivas dos funcionários públicos ou legalmente assemelhados, não foi
revogado nem pelo artigo 197 da Constituição de 1946, nem pelo artigo 107 da
Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, nem, muito menos, pelo § 6º do artigo 37
da atual Carta, sendo, portanto, recepcionado por todas. Porém, existe somente
a derrogação da lei civil quando se trata dos atos comissivos.
O mais
interessante é que existe enorme divergência interpretativa daquele artigo. O
que era de se esperar, pois a lei data do início do século, e as legislações
maiores que sobrevieram não se atentaram para o fato de sua revogação parcial.
Para as missões dos agentes inexiste entre nós a responsabilidade objetiva em face
da vigência desta parte do artigo 15. A jurisprudência caminha sem firmeza,
visto que a culpa foi exigida pelo legislador antepassado, uma contundente
demonstração da teoria da responsabilidade subjetiva da culpa administrativa,
que subsiste ainda hoje com a teoria da responsabilidade objetiva do risco
administrativo. É uma verdadeira aberração jurídica: um rosto de 1916 e um
corpo de uma adolescente.
O atual Código
Civil, datado de 10 de janeiro de 2002, continuou com a mesma ideia do
antecessor, mantendo as pessoas de direito público interno no campo civil,
conforme já foi discutido, apenas excluindo a responsabilidade da pessoa
jurídica no caso de culpa lato sensu
de seu agente.[9]
Professor Tutor Dr. Cildo Giolo Júnior
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1891). Constituição Política do Império do Brazil.Presidência
da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso
em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos
do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos
Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso
em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos
do Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos
Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em:
03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil.Presidência
da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso
em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil.Presidência
da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm. Acesso
em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1967-69). Constituição da República Federativa do
Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos
Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67EMC69.htm.
Acesso em: 03out. 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos
Jurídicos. Brasília, DF. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 03out.
2015.
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5.ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
MEIRELLES,Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30.ed. São
Paulo: Malheiros, 2005.
[1] “Art 82 - Os funcionários
públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que
incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou
negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.
Parágrafo único - O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no
ato da posse, ao desempenho dos seus deveres legais.”
[2] “Art 194 - As pessoas
jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos
que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único
- Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando
tiver havido culpa destes.”
[3] “Muitos doutrinadores
brasileiros defendem o entendimento de que o artigo 194 desta Constituição
revogou de forma tácita o artigo 15 do Código Civil, ao substituir o princípio
de culpa, pela teoria que fundamenta a obrigação do Estado no nexo de causalidade
entre o dano sofrido pelo particular e a atividade pública que o provocou.”ÉlcioTrujillo,
Responsabilidade do estado por ato
ilícito, p.103.
[4] “Artigo 107. As pessoas
jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários,
nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá ação regressiva
contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
[5] “Artigo 194. As pessoas
jurídicas de direito público interno responderão pelos danos que seus
funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá
ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
[6] “Art. 15 - As pessoas
jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus
representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo
contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito
regressivo contra os causadores do dano.”
[9] “Art. 43. As pessoas
jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos
seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito
regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou
dolo.”