quarta-feira, 4 de junho de 2014

COPA DO MUNDO: MANIFESTAÇÕES À VISTA. É HORA DE O PODER CONSTITUINTE SER EXERCIDO?

No final do mês de junho e durante todo mês de julho de 2013, o Brasil assistiu a uma série de manifestações populares desencadeadas por mobilizações que haviam se iniciado na cidade de São Paulo e que se opunham ao aumento das tarifas de ônibus na capital paulista. Ao longo do país, as manifestações ganharam diversas bandeiras como reivindicações pela melhoria dos serviços públicos e combate à corrupção nos âmbito político. Ainda durante as manifestações, nossa presidente Dilma Roussef anunciou a intenção de convocar um plebiscito para instalação de uma assembléia constituinte para discussão da reforma política como resposta à insatisfação generalizada que se vislumbrava. 

Com a iminência da Copa do Mundo, varias manifestações de diversos níveis de organização e externadas, principalmente, nas redes sociais, levantam novamente a intenção e a necessidade de protestar; agora, contra a realização do mundial de futebol no Brasil, sob os argumentos de ocorrência de corrupção e de privilégio, pelo Brasil, de um evento esportivo "caro" em detrimento de áreas essenciais tratadas de forma precária pelo governo, tais como saúde e educação.

Parece improvável que haja mobilização política, seja do Executivo, seja do Legislativo, para reacender neste momento a discussão sobre um novo processo constituinte, pois não haveria "clima" para isso no momento da realização da Copa do Mundo justamente na país que é a "pátria de chuteiras". Mas não valeria a pena conjecturar essa possibilidade?  

À época das manifestações de julho de 2013, nossa presidente pareceu determinada a atender aos clamores das ruas, impulsionando o Congresso Nacional a fazer o que este não tinha feito até então. De fato, estamos cansados, insatisfeitos e não parecemos mais dispostos a tolerar a forma com que se faz política no Brasil. Ao contrário do que muito se veiculou na mídia e do que ressoou no próprio discurso do governo, o movimento das ruas tiveram, sim, uma causa e um objetivo claro: transformar omodus operandi da política brasileira. Se clamamos por saúde, por educação, contra a corrupção ou por serviços públicos de melhor qualidade e mais baratos é porque tudo isso tem sido reiteradamente barrado por aqueles que, segundo o sistema político vigente, nos representam e que deveriam fazer as nossas vezes na tomada das decisões mais caras à coletividade.

Governo, não adianta gritar que há 10 anos o Brasil vem experimentando a maior transformação de sua história ou que "nunca na história desse pais [...]". Se fosse assim, o povo não estaria nas ruas. Há portanto um descompasso entre seu discurso e a realidade. Oposição, não adianta querer jogar no colo do atual governo toda responsabilidade porque vocês também não fizeram a reforma política nos seus oito anos de governo.

Aliás, se não me engano, desde a República Velha, o modo de fazer política no Brasil pouco se modificou e, passando a limpo a "novíssima República" inaugurada em 1988, nenhum governo se opôs contundentemente a esse modus operandi, seja governo de direita, de esquerda, de centro, de lado, de ponta esquerda, qualquer que seja sua orientação ideológica. Ou nos últimos 25 anos deixou de haver uma balcão de negócios entre o Congresso Nacional, que vendeu seus votos a preço de cargos públicos, influências e posições oferecidos pelo Executivo e por sua Administração? Em alguma das eleições dos últimos 25 anos, os financiadores das campanhas eleitorais deixaram de cobrar a fatura da conta após o pleito e deixaram de ser favorecidos pelos candidatos vencedores?? Algum dos governos dos últimos 25 anos deixou de cooptar a maioria dos partidos no Congresso Nacional sob a justificativa da necessidade da maioria para governar??? 

Pois bem, então nossa presidente não fez a coisa certa ao chamar o povo para participar de mais de perto dessa obra chamada reforma política, já que os nossos representantes não o fizeram até agora nem têm se mostrado dispostos a fazer? Não, presidente, você não fez a coisa certa!

Primeiramente, a senhora não pode convocar um plebiscito. O plebiscito, apesar de expressar o exercício da soberania popular (art. 14, CF) e de se prestar, sim, a discussões de questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, deve ser convocado mediante decreto legislativo proposto por, no mínimo, um terço dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 3°, Lei n° 9.709/1998).

Em segundo lugar, assembléia constituinte popular não se convoca, se forma espontaneamente pela organização popular diante de situações-limite de crise e de ruptura institucional. Não cometamos o erro, a despeito de formal, que macula até hoje nosso texto constitucional. A Constituição de 1988 é democrática, resultou de um processo constituinte legítimo, participativo, que ouviu diversos setores de nossa população, mas foi produzida a partir de uma emenda à Constituição anterior, o que é totalmente descabido. Se o poder constituinte é soberano uno, inalienável, incondicionado (juridicamente desvinculado), não pode ser iniciado a partir da convocação de um plebiscito, mesmo que este seja convocado por um decreto legislativo, como exige a nossa Constituição. 

Além disso, a teoria politica e a teoria constitucional que desenharam estas características ao poder constituinte impedem uma "constituinte parcial ou específica". Tenho que discordar da profa. Margarida Maria Lacombe, cujo trabalho admiro e que, também à época, em entrevista à Globonews, defendeu uma flexibilização da teoria tradicional do poder constituinte em nome de uma constituinte parcial ou específica. Fico aqui, com o presidente nacional da OAB, Marcos Vinícius Furtado que também se manifestara naquele momento: "não existe constituinte especifica, pois são os constituintes que definem o limite e a abrangência". 

A função de uma constituinte é inaugurar um novo Estado, uma nova ordem político-institucional. Por isso a Constituição de 1988 não permite que partes específicas de seu texto sejam modificadas por meio de assembleias específicas. Ou se estabelece uma Constituição complemente nova, via poder constituinte, ou se emenda a atual Constituição na parte em que demande modificação. A única possibilidade de haver uma constituinte seria revogar toda a Constituição. É isso que o povo que está nas ruas queria? As potenciais manifestações que possam ser desencadeadas com o início da Copa do Mundo teriam esse objetivo?

A função de emendar a Constituição não é do poder constituinte, mas do poder derivado ou poder de reforma da Constituição. Sem romper com a ordem constitucional estabelecida, não há como ignorar os limites a esse poder de reforma, estampados no art. 60, CF: proposta por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou pelo Presidente da República ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. Além disso, a proposta deverá ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. Qualquer tentativa de alteração do texto fora dos marcos constitucionais deve ser compreendida como uma medida inconstitucional.

Respeito do trabalho do prof. Daniel Sarmento, mas, manifestando-se naquela ocasião ele errou também: o plebiscito não se presta a modificar a Constituição, mas a consultar o povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa (art. 2°, Lei n° 9.709/1999). Depois da consulta, é preciso o procedimento correto para a alteração da Constituição, que é a emenda Constitucional, caso contrário, teremos um atentado à ordem constitucional estabelecida, pois a forma de alteração do texto constitucional é cláusula pétrea, não pode ser modificada a não ser por um novo processo constituinte. Essa, inclusive, é a interpretação atual do STF. Não seria possível, portanto, que um plebiscito definisse uma nova forma de alterar o texto constitucional.

Não é o caso de afirmar que a presidente Dilma e o PT quiseram dar um golpe de Estado. Quando o ex- presidente Fernando Henrique afirmou em junho de 2013 à Folha de São Paulo que a proposta de realização de plebiscito para a reforma política é própria de regimes autoritários só enxerguei uma oposição que, ao invés de contribuir para o debate, prefere aprofundar a instabilidade que parecia estar na ordem do dia. Prefiro a posição do ministro do STF Marco Aurélio Mello, que avaliou que a proposta de Dilma representa mais uma vontade de "motivar os deputados e senadores para chegarem a um consenso e realizar a reforma política.

Não desacredito das intenções de nossa presidente, mas, com certeza ela foi muito mal assessorada pela advocacia da União ao anunciar esta medida. Muito me admira que seu vice, Michel Temer, professor de direito constitucional e que criticou a constituinte exclusiva em artigo publicado no endereço eletrônico da Câmara dos Deputados, não tenha se oposto a isso, mas preferido ficar inerte. Quando de sua publicação, Temer afirmara que "[...] uma constituinte só pode ser convocada para abrigar situações excepcionais. Somente a excepcionalidade político-constitucional a autoriza. Foi assim com a Constituinte de 87/88. Saímos de um sistema autoritário para um democrático, e a nova norma jurídica deveria retratar, como o fez, a nova moldura". Continuou, na sequência do artigo com questionamentos muito pertinentes: " como realizar uma constituinte exclusiva? Os atuais parlamentares poderiam dela participar? Se participassem, teriam dois mandatos, um constituinte e um ordinário? Quem participa da constituinte exclusiva pode ver cerceado seu direito de cidadão para participar de uma legislatura ordinária? Não seria uma restrição à cidadania? Como funcionariam a constituinte exclusiva e a legislatura ordinária? Haveria concomitância de atividades?" 


Concordo com Temer - o do artigo, não o vice - para quem "uma constituinte exclusiva para a reforma política significa a desmoralização absoluta da atual representação. É a prova da incapacidade de realizarmos a atualização do sistema político-partidário e eleitoral." Se fosse este o caso - e não acredito que era nem em julho de 2013, nem em junho de 2014 - deveríamos, então, pensar em um nova Constituição.

Professor Tutor Thiago Vieira Mathias de Oliveira