segunda-feira, 12 de maio de 2014

CANARIS E O PROBLEMA DA JUSTIÇA

Pode soar como contraditória a afirmação de que, contemporaneamente, o problema da justiça não perpassa a esfera de preocupação dos juristas. O aluno ingressante em curso jurídico espera, em alguma medida, que esta seja uma questão recorrente sobre a qual seus professores versarão. Não é assim, contudo, e pode gerar algum desconcerto a percepção de que estudar a ciência jurídica não coincide com estudar a ciência da justiça.

A modernidade assistiu a uma separação de campos bastante nítida entre o direito e a política. Em regra, as questões referentes à justiça distributiva estão sob o encargo da política, relacionadas, portanto, ao bem comum e às decisões lastreadas na conveniência e oportunidade que devem ser tomadas pelos órgãos administrativos; ao jurista e aos tribunais comuns, cabe realizar a justiça comutativa, ligada aos interesses eminentemente particulares. Quando o judiciário se imiscui em questões de distribuição, tende-se a enxergar o ato como uma distorção do sistema, nomeada hoje como ativismo judicial. Este tem sido um dos principais pontos de debate entre os jusfilósofos de nossos tempos. (1)

Ainda que o ativismo judicial – ou a politização do sistema judiciário – seja visto como uma distorção que leva ao limite as tensões inerentes à nossa organização político-constitucional, é de se notar que o fenômeno traz de volta ao instrumental do jurista a justiça distributiva. O problema, entretanto, é que o jurista, formado nos moldes modernos, não sabe articular este instrumento. Sabemos manusear, com alguma habilidade, o sistema jurídico: temos em mente o modelo de escalonamento de normas kelseniano, o modelo das redes normativas, temos bem arraigadas as noções de autonomia privada, direito subjetivo, composição de suporte fático, incidência e jurisdicização. Mas se nos perguntam “onde entra a justiça no meio disso tudo?”, é possível que fiquemos sem resposta. (2)

Neste ponto, abunda em importância a obra de Claus-Wilhelm Canaris, professor na Ludwig-Maximilian-Universität, em Munique, onde sucedeu Karl Larenz. Canaris, em uma conhecida obra de sua autoria (3), procura um ajuste entre uma noção muito cara aos modernos – a noção de sistema – e a justiça. O professor alemão aponta a insuficiência do pensamento que remonta a um paradigma jurídico puramente lógico-formal, indicando o caminho para a construção de um sistema axiológico, cujo elemento integrador seja, justamente, o postulado da justiça de tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida de sua diferença. Canaris, assim, reconduz ao princípio da igualdade, postulado de justiça, o papel de garantir a unidade interior e adequação valorativa de cada elemento da ordem jurídica, reinserindo, de forma ampla e decisiva, a justiça na pauta de preocupações do jurista.

Em língua portuguesa, além do livro Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, encontramos do autor também a importante obra Direitos fundamentais e direito privado (4), tratando de outro tema caro aos jusfilósofos e privatistas contemporâneos.
No ano de 2012, o Professor Canaris esteve no Brasil para receber, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o título de doutor honoris causa, ocasião que pode ser documentada no breve vídeo abaixo:



(1)   Sobre o processo histórico de distinção mencionado no texto, veja Lima Lopes, José Reinaldo. As palavras e a lei. São Paulo: Editora 34, 2004, especialmente o capítulo 04 da obra. 

(2)   A respeito desta peculiaridade do ensino jurídico na modernidade, Lima Lopes ensina que “nota-se aqui uma importante novidade. Se o modo antigo de ensinar o direito principiava pela discussão da justiça, que dava o sentido final da ordem jurídica, para em seguida passar-se às formas do direito, como a lei, no modelo novo vai-se diretamente à lei e ao respectivo complexo – o direito – a um sistema de controle das liberdades”. (Lima Lopes, op. cit. (nota 1), pág. 235).

(3)   Esta obra é Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudez, 2ª ed. Berlim: Duncker und Humblot, 1983, traduzida para o português por Antônio Menezes Cordeiro, sob o título Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.


(4)   Canaris, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado (trad. port. Sarlet, Ingo Wolfgang; Pinto, Paulo Mota), 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. 

Professor Tutor Renato Sedano Onofri