Pode
soar como contraditória a afirmação de que, contemporaneamente, o problema da
justiça não perpassa a esfera de preocupação dos juristas. O aluno ingressante
em curso jurídico espera, em alguma medida, que esta seja uma questão recorrente
sobre a qual seus professores versarão. Não é assim, contudo, e pode gerar
algum desconcerto a percepção de que estudar a ciência jurídica não coincide
com estudar a ciência da justiça.
A
modernidade assistiu a uma separação de campos bastante nítida entre o direito e a política. Em regra, as questões referentes à justiça distributiva
estão sob o encargo da política, relacionadas, portanto, ao bem comum e às
decisões lastreadas na conveniência e oportunidade que devem ser tomadas pelos
órgãos administrativos; ao jurista e aos tribunais comuns, cabe realizar a
justiça comutativa, ligada aos interesses eminentemente particulares. Quando o
judiciário se imiscui em questões de distribuição, tende-se a enxergar o ato
como uma distorção do sistema, nomeada hoje como ativismo judicial. Este tem sido um dos principais pontos de debate
entre os jusfilósofos de nossos tempos. (1)
Ainda
que o ativismo judicial – ou a politização
do sistema judiciário – seja visto como uma distorção que leva ao limite as
tensões inerentes à nossa organização político-constitucional, é de se notar
que o fenômeno traz de volta ao instrumental do jurista a justiça distributiva.
O problema, entretanto, é que o jurista, formado nos moldes modernos, não sabe articular
este instrumento. Sabemos manusear, com alguma habilidade, o sistema jurídico:
temos em mente o modelo de escalonamento de normas kelseniano, o modelo das
redes normativas, temos bem arraigadas as noções de autonomia privada, direito
subjetivo, composição de suporte fático, incidência e jurisdicização. Mas se
nos perguntam “onde entra a justiça no meio disso tudo?”, é possível que fiquemos
sem resposta. (2)
Neste
ponto, abunda em importância a obra de Claus-Wilhelm
Canaris, professor na Ludwig-Maximilian-Universität, em Munique, onde
sucedeu Karl Larenz. Canaris, em uma conhecida obra de sua
autoria (3), procura um ajuste entre uma noção muito cara aos modernos – a
noção de sistema – e a justiça. O professor alemão aponta a insuficiência do
pensamento que remonta a um paradigma jurídico puramente lógico-formal,
indicando o caminho para a construção de um sistema axiológico, cujo elemento integrador seja, justamente, o postulado
da justiça de tratar o igual de modo
igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida de sua diferença.
Canaris, assim, reconduz ao princípio da igualdade, postulado de
justiça, o papel de garantir a unidade interior e adequação valorativa de cada
elemento da ordem jurídica, reinserindo, de forma ampla e decisiva, a justiça
na pauta de preocupações do jurista.
Em
língua portuguesa, além do livro Pensamento
sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, encontramos do
autor também a importante obra Direitos
fundamentais e direito privado (4), tratando de outro tema caro aos jusfilósofos
e privatistas contemporâneos.
No
ano de 2012, o Professor Canaris
esteve no Brasil para receber, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, o título de doutor honoris
causa, ocasião que pode ser documentada no breve vídeo abaixo:
(1)
Sobre
o processo histórico de distinção mencionado no texto, veja Lima Lopes, José Reinaldo. As palavras e a lei. São Paulo: Editora
34, 2004, especialmente o capítulo 04 da obra.
(2)
A
respeito desta peculiaridade do ensino jurídico na modernidade, Lima Lopes ensina que “nota-se aqui uma
importante novidade. Se o modo antigo de ensinar o direito principiava pela
discussão da justiça, que dava o sentido final da ordem jurídica, para em
seguida passar-se às formas do direito, como a lei, no modelo novo vai-se
diretamente à lei e ao respectivo complexo – o direito – a um sistema de
controle das liberdades”. (Lima Lopes,
op. cit. (nota 1), pág. 235).
(3)
Esta obra é Systemdenken und Systembegriff in der
Jurisprudez, 2ª ed. Berlim:
Duncker und Humblot, 1983, traduzida para o português por Antônio Menezes Cordeiro, sob o título Pensamento sistemático e conceito de sistema
na ciência do direito, 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
(4)
Canaris, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado (trad. port. Sarlet, Ingo Wolfgang; Pinto, Paulo Mota), 2ª ed. Coimbra:
Almedina, 2003.
Professor Tutor Renato Sedano Onofri