Como aponta Celso Antônio Bandeira de
Mello, “é muito discutido em doutrina se basta a mera voluntariedade para
configurar a existência de um ilícito administrativo sancionável, ou se haveria
necessidade ao menos de culpa”[1].
Apenas como forma de subsidiar esse debate, o presente texto traz os traços de
identificação de voluntariedade e culpabilidade.
A culpabilidade
é gênero das espécies dolo e culpa em seu sentido estrito. Ela é
formada pela reprovabilidade baseada na divergência da vontade do indivíduo
frente à vontade legal.
O dolo, além da vontade de se conduzir, é
caracterizado pela finalidade, intenção, de atingir um resultado ilícito[2]. Na culpa em sentido
estrito, não há intenção no resultado,
na conduta ilícita. O infrator, ainda que preveja, não deseja causar o dano,
mas o faz por imprudência, negligência ou imperícia.
A reprovabilidade da culpa não se pauta na
intenção, mas na possibilidade de o agente prever[3] o resultado lesivo e, ainda
assim, se conduzir ilicitamente. A previsibilidade não exige que o agente tenha
efetivamente vislumbrado o ilícito, basta que a previsão seja possível.
Já a voluntariedade é pressuposto da culpabilidade.
A conduta é um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) que
seja relevante ao mundo jurídico[4].
“A ação pode ser definida como movimento corporal voluntário”[5],
da mesma forma que a omissão precisa ser voluntária, para que se fale em
conduta[6].
Se a ação ou omissão forem determinadas por elementos estranhos à vontade do
agente, não há voluntariedade. Portanto, “há voluntariedade quando existe a
possibilidade de prévia ciência e prévia eleição, in concreto, do
comportamento”[7]. Impulsos incontrolados de ação de
origem interna ao indivíduo (flexões musculares, sonambulismo,
inimputabilidade) ou externa (constrangimento físico) não são voluntários, de
forma que afastam a noção de conduta e, por sua vez, de culpa. Não é por menos
que a inimputabilidade, a força maior, o caso fortuito, o estado de
necessidade, a legitima defesa, o fato de terceiro e a coação irresistível são
todos excludentes da própria voluntariedade, conseqüentemente, da
responsabilidade administrativa.
A voluntariedade se posiciona um passo
antes da culpabilidade, de forma que a verificação de intenção de se conduzir é
o suficiente para se configurar a voluntariedade, mas ainda insuficiente para a
verificação de culpa em seu sentido lato.
Ao tratar da ação voluntária, José Frederico Marques
diferencia voluntariedade e culpabilidade:
“a voluntariedade da
conduta ativa não se confunde com a projeção da vontade sobre o resultado. O
querer intencional de produzir o resultado é matéria pertinente à
culpabilidade, e não, à ação”.
Tratando, ainda, de ação e culpabilidade,
destaca o autor que “no primeiro caso, verifica-se existência da vontade como
suporte psíquico do ato; na segunda hipótese, formula-se um juízo de valor
sobre o conteúdo da vontade”[8].
A voluntariedade
e a culpabilidade no aspecto
subjetivo estão próximas e interligadas uma a outra. No entanto, sua
identificação é relevante ao Direito, especialmente quanto ao ônus de prova
para a verificação dos elementos essenciais de uma infração administrativa.
Diferentemente da culpabilidade, a
voluntariedade do agente é presumida à ocorrência de ação ou omissão, bastando
a prova de que estes ocorreram. Tal presunção se baseia no fato de que as ações
e omissões decorrem naturalmente da vontade do agente.
Enfim, traçadas algumas diferenças e
identidades entre voluntariedade e culpabilidade nos atos, é possível se
enveredar pelos estudos da responsabilidade administrativa, se esta seria como
regra objetiva ou subjetiva.
Professor Tutor Ronaldo Gerd Seifert
Caso queira ler mais sobre o assunto acesse o link: http://sare.anhanguera.com/index.php/rdire/article/download/2862/1142
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2006, p. 805.
[2] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. v. II.
Campinas: Bookseller, 1997, p. 256 – “ação é voluntária porque não provém de
fatores internos ou externos que obrigam a vontade a atuar no mundo exterior; e
é dolosa porque o elemento psíquico focaliza e procurou uma conduta considerada
delitiva”.
[3]
MARQUES, José Frederico. Tratado de
Direito Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 267 - “prever o que possa advir de determinada
conduta é sobretudo operação psíquica de caráter eminentemente intelectual. Não
se tire daí, porém, a falsa ilação de que a culpa não deriva de atuação da
vontade, mas tão-só da inteligência. Representar o efeito danoso de uma
conduta, no futuro, é momento intelectivo que deve preceder à atividade
voluntária para orientá-la e guiá-la. A ação inicial, antecedente e prius do evento, foi contrária ao dever
porquanto não foi dirigida em função do que se não previu mas que podia ser
previsto”.
[4] FERREIRA, Carmindo. LACERDA,
Henrique. Lições de Direito Penal.
Lisboa, 1945, p. 194 – apud Manoel Pedro Pimentel. Crimes de Mera Conduta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.
31 – os autores destacam a pertinência da ação e da omissão: “interessam ao
direito na medida em que violam um dever jurídico em que contrariam os fins da
ordem jurídica. Esta não pretende apenas que os indivíduos se abstenham de
certo comportamento mas também que atuem de certa maneira. Tanto o movimento
como a inércia podem, por isso, contrariar os fins que ela se propõe. E, sob
este aspecto, a omissão que no ponto de vista naturalístico seria uma
irrealidade, toma forma , transforma-se em algo que é objeto do direito e, de
alguma sorte, sua criação. Se a omissão é reprovada pelo direito quando
ofensiva da ordem jurídica, é porque constitui um objeto da ordem jurídica;
como tal, é uma realidade jurídica”.
[5] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1968, p. 33.
[6] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1968, p. 39 – “o lemento essencial da omissão é também a
voluntariedade. Não há omissão por quem tenha sido coagido a não fazer.
[7] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no Dreito Administrativo. São
Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 40.
[8] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. v. II.
Campinas: Bookseller, 1997, p. 66 – o catedrático prossegue na diferenciação:
“a ausência de querer interno torna inexistente a ação como conduta relevante
para constituir o fato típico; a falta de dolo, ou de culpa em sentido estrito,
torna o fato não punível por ausência de culpabilidade”.