segunda-feira, 26 de maio de 2014

Traços de identificação de voluntariedade e culpabilidade

Como aponta Celso Antônio Bandeira de Mello, “é muito discutido em doutrina se basta a mera voluntariedade para configurar a existência de um ilícito administrativo sancionável, ou se haveria necessidade ao menos de culpa”[1]. Apenas como forma de subsidiar esse debate, o presente texto traz os traços de identificação de voluntariedade e culpabilidade.

A culpabilidade é gênero das espécies dolo e culpa em seu sentido estrito. Ela é formada pela reprovabilidade baseada na divergência da vontade do indivíduo frente à vontade legal.

O dolo, além da vontade de se conduzir, é caracterizado pela finalidade, intenção, de atingir um resultado ilícito[2]. Na culpa em sentido estrito, não há intenção no resultado, na conduta ilícita. O infrator, ainda que preveja, não deseja causar o dano, mas o faz por imprudência, negligência ou imperícia.

A reprovabilidade da culpa não se pauta na intenção, mas na possibilidade de o agente prever[3] o resultado lesivo e, ainda assim, se conduzir ilicitamente. A previsibilidade não exige que o agente tenha efetivamente vislumbrado o ilícito, basta que a previsão seja possível. 

Já a voluntariedade é pressuposto da culpabilidade. A conduta é um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) que seja relevante ao mundo jurídico[4]. “A ação pode ser definida como movimento corporal voluntário”[5], da mesma forma que a omissão precisa ser voluntária, para que se fale em conduta[6]. Se a ação ou omissão forem determinadas por elementos estranhos à vontade do agente, não há voluntariedade. Portanto, “há voluntariedade quando existe a possibilidade de prévia ciência e prévia eleição, in concreto, do comportamento”[7]. Impulsos incontrolados de ação de origem interna ao indivíduo (flexões musculares, sonambulismo, inimputabilidade) ou externa (constrangimento físico) não são voluntários, de forma que afastam a noção de conduta e, por sua vez, de culpa. Não é por menos que a inimputabilidade, a força maior, o caso fortuito, o estado de necessidade, a legitima defesa, o fato de terceiro e a coação irresistível são todos excludentes da própria voluntariedade, conseqüentemente, da responsabilidade administrativa.

A voluntariedade se posiciona um passo antes da culpabilidade, de forma que a verificação de intenção de se conduzir é o suficiente para se configurar a voluntariedade, mas ainda insuficiente para a verificação de culpa em seu sentido lato.

Ao tratar da ação voluntária, José Frederico Marques diferencia voluntariedade e culpabilidade:

“a voluntariedade da conduta ativa não se confunde com a projeção da vontade sobre o resultado. O querer intencional de produzir o resultado é matéria pertinente à culpabilidade, e não, à ação”.

Tratando, ainda, de ação e culpabilidade, destaca o autor que “no primeiro caso, verifica-se existência da vontade como suporte psíquico do ato; na segunda hipótese, formula-se um juízo de valor sobre o conteúdo da vontade”[8].

A voluntariedade e a culpabilidade no aspecto subjetivo estão próximas e interligadas uma a outra. No entanto, sua identificação é relevante ao Direito, especialmente quanto ao ônus de prova para a verificação dos elementos essenciais de uma infração administrativa. Diferentemente da culpabilidade, a voluntariedade do agente é presumida à ocorrência de ação ou omissão, bastando a prova de que estes ocorreram. Tal presunção se baseia no fato de que as ações e omissões decorrem naturalmente da vontade do agente.

Enfim, traçadas algumas diferenças e identidades entre voluntariedade e culpabilidade nos atos, é possível se enveredar pelos estudos da responsabilidade administrativa, se esta seria como regra objetiva ou subjetiva.

Professor Tutor Ronaldo Gerd Seifert

Caso queira ler mais sobre o assunto acesse o link: http://sare.anhanguera.com/index.php/rdire/article/download/2862/1142



[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 805.
[2] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 256 – “ação é voluntária porque não provém de fatores internos ou externos que obrigam a vontade a atuar no mundo exterior; e é dolosa porque o elemento psíquico focaliza e procurou uma conduta considerada delitiva”.
[3] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 267 -  “prever o que possa advir de determinada conduta é sobretudo operação psíquica de caráter eminentemente intelectual. Não se tire daí, porém, a falsa ilação de que a culpa não deriva de atuação da vontade, mas tão-só da inteligência. Representar o efeito danoso de uma conduta, no futuro, é momento intelectivo que deve preceder à atividade voluntária para orientá-la e guiá-la. A ação inicial, antecedente e prius do evento, foi contrária ao dever porquanto não foi dirigida em função do que se não previu mas que podia ser previsto”.
[4] FERREIRA, Carmindo. LACERDA, Henrique. Lições de Direito Penal. Lisboa, 1945, p. 194 – apud Manoel Pedro Pimentel. Crimes de Mera Conduta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 31 – os autores destacam a pertinência da ação e da omissão: “interessam ao direito na medida em que violam um dever jurídico em que contrariam os fins da ordem jurídica. Esta não pretende apenas que os indivíduos se abstenham de certo comportamento mas também que atuem de certa maneira. Tanto o movimento como a inércia podem, por isso, contrariar os fins que ela se propõe. E, sob este aspecto, a omissão que no ponto de vista naturalístico seria uma irrealidade, toma forma , transforma-se em algo que é objeto do direito e, de alguma sorte, sua criação. Se a omissão é reprovada pelo direito quando ofensiva da ordem jurídica, é porque constitui um objeto da ordem jurídica; como tal, é uma realidade jurídica”.
[5] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 33.
[6] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 39 – “o lemento essencial da omissão é também a voluntariedade. Não há omissão por quem tenha sido coagido a não fazer.
[7] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no Dreito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 40.
[8] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 66 – o catedrático prossegue na diferenciação: “a ausência de querer interno torna inexistente a ação como conduta relevante para constituir o fato típico; a falta de dolo, ou de culpa em sentido estrito, torna o fato não punível por ausência de culpabilidade”.