segunda-feira, 15 de setembro de 2014

A SÚMULA VINCULANTE E OS SEUS EFEITOS NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DO ´NEO´CONSTITUCIONALISMO

A súmula representa o posicionamento predominante de um tribunal (estadual ou federal) sobre determinada questão jurídica, tendo seu enunciando apenas caráter persuasivo.[1] A EC n. 45/2004, no entanto, introduziu na ordem jurídica constitucional a súmula com efeito vinculante, autorizando que o Supremo Tribunal Federal a edite sobre questões constitucionais, pelo que os demais órgãos judicantes e a Administração Pública devem obediência ao comando do seu enunciado, ou seja, o aludido instrumento normativo, trazendo à baila a “reforma do judiciário”, acrescentou à Constituição o artigo 103-A da Constituição Federal de 1988, introduzindo na nossa ordem jurídica constitucional a súmula[2] vinculante. Da leitura do sobredito dispositivo constitucional, infere-se, de plano, que a edição de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal exige a conjugação de dois requisitos: a) aprovação de 2/3 (dois terços) de seus membros; b) decisões reiteradas sobre idêntica questão constitucional. Com efeito, a edição de uma súmula vinculante impede não só que essa mesma questão seja levada novamente ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal, como também obriga que sua decisão seja dotada de força vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública.
Portanto, no Brasil, o surgimento da súmula vinculante é mais um fator para “objetivação” ou “dessubjetivação” do controle difuso. Sim, porque essa figura é o retrato da evolução do pensamento jurídico no contexto dos efeitos do controle de constitucionalidade difuso, desde a criação da figura da resolução do Senado, o que demonstra a preocupação do nosso ordenamento de tentar generalizar as decisões do Supremo Tribunal Federal em de sede de controle concreto. Em outras palavras, a proposta visa a uniformizar os temas de natureza constitucional entre os órgãos judiciários ou entre estes e a Administração Pública, em um quadro de aproximação do modelo difuso-concreto de constitucionalidade com a jurisdição constitucional concentrada, como se entre eles existissem uma ponte de conexão unida, dentre outros, pelo instituto das súmulas. Deveras, a súmula vinculante, na lição de André Ramos Tavares (2012, p.437) deve ser compreendida como processo objetivo característico que serve para aproximar o controle difuso-concreto de constitucionalidade (reiteradas decisões) do controle abstrato-concentrado (efeito vinculante). Dessa forma, passa-se a sustentar, diante desse novel entendimento, que uma decisão promanada do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso pode ter a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado.
Tal procedimento sumular, com eficácia vinculante, evidencia a certeza do direito, traduzida no princípio da segurança jurídica. Mesmo porque não se faz justiça com julgamentos lentos e ineficazes.
Muitos poderiam dizer que o método do respeito obrigatório aos precedentes (stare decisis et non quieta movere, ou seja, mantenha-se a decisão e não se pertube o que já foi decidido) é incompatível com o sistema do civil law. De fato, o precedente constitui uma importante fonte do direito da common law. Enquanto o juiz da civil law se circunscrevia à mecânica aplicação da lei, o juiz da tradição da common law criava o direito.
Como vivemos em um ambiente marcado pelo ‘neo’constitucionalismo, movimento esse que foi responsável por deslocar a Constituição para o centro do sistema jurídico, muitos temas foram constitucionalizados. E nesse novo cenário, as normas jurídicas já não são capazes de trazer em seu relato abstrato a solução para todos os problemas. O marco filosófico do ‘neo’constitucionalismo (pós-positivismo) realça a proatividade dos juízes em torno da necessidade de participar ativamente do processo de criação do direito. Essa proposta abre caminho para um conjunto amplo e ainda incompleto de reflexões acerca do atual papel do Supremo Tribunal Federal, que passa a protagonizar uma série de ações construtivas do direito constitucional. Tanto é verdade que o Tribunal, de há muito, vem utilizando as técnicas de interpretação conforme e declaração parcial de nulidade sem redução de texto, para dar sentido diverso do que é conferido pelo Legislador.
Enfim, tal situação própria do pós-positivismo evidencia a mudança de paradigma jurídico tradicional, assim qualificado pelo deslocamento da lei para o juiz, o qual deve completar a solução inicialmente relatada pelo texto normativo, mediante a ponderação dos interesses envolvidos, já que, em uma ordem pluralista, existem diversos princípios que abrigam valores ou fundamentos diversos, aparentemente contrapostos, sendo certo que o intérprete deve, à vista dos elementos do caso concreto, fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis (BARROSO, 2014, p.21-22). Essa visão pós-positivista e principiológica do Direito impõe uma postura diferente do juiz, elevando-o, sob a condição de verdadeiro intérprete, a uma função criativa do direito.
Com isso, se o juiz não mais desempenha meramente uma função técnica de conhecimento, e, portanto, se sua decisão não mais se insere tão-somente dentro de um processo silogístico de subsunção do caso concreto à norma, cabendo-lhe exercer a função criativa do caso concreto, indaga-se, se em nome do livre convencimento dos juízes, estariam eles livres para julgar, mesmo que suas decisões estivessem em flagrante desconformidade com a orientação predominante?
Ora, parece-nos que o novo pensamento constitucional impulsionado pelo pós-positivismo não dá espaços a qualquer tipo de atitude “decisionista” e práticas voluntárias iníquas, de matizes diversos, que, pondo em risco a segurança jurídica e a igualdade dos jurisdicionados, culminam no desmoronamento do próprio sistema jurídico do qual faz parte e debilitam, em última análise, a força normativa da Constituição.[3] Não se pode engendrar o mesmo mal (insegurança jurídica) que se pretende combater. Por isso mesmo, a decisão deve ser resultado de um sistema, servindo a Constituição como instrumento delimitador da atuação criativa do intérprete, por meio de um conjunto vertiginoso de normas princípiológicas que o orientarão sua escolha, e o Supremo Tribunal Federal com órgão controlador dessa prática.
E nesse quadro de controvérsias e tergiversações, no qual o jurisdicionado fica sujeito à “loteria das decisões judiciais” (MANCUSO, 2007, p.150), surge uma alternativa para o combate da instabilidade e inefetividade do sistema jurídico: a fórmula do respeito obrigatório aos precedentes judiciais. 

Professor Tutor Mateus Pieroni Santini

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalismo do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto de Direito Público, n. 9, março/abril/maio 2007. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 02 set. 2014.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 

MELLO, Alessandra Lopes Santana de. A ideologia do caso concreto e a segurança jurídica. Revista de Direito Constitucional e Internacional (RDCI). São Paulo, n.77, ano 19, out./dez. 2011.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 






[1] No common law, todas as deduções consideradas não essenciais de um julgamento pelo Tribunal inserem-se dentro daquilo que o rigor técnico anglo-saxão denomina de dictum (singular) ou dicta (plural), assim consideradas afirmações jurídicas, com efeito de caráter não obrigatório (persuasivo), que, a despeito de constar no corpo da decisão, são prescindíveis ao julgamento da causa.
[2] O nosso ordenamento jurídico prevê, no artigo 518, §1º, graças à redação dada pela Lei n. 11.276/2006, a chamada súmula impeditiva de recurso, segundo a qual o juiz não recebe o recurso de apelação em virtude de sua sentença estar em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. Ademais, nos termos do artigo 557, caput, do CPC o relator não dará seguimento a recurso manifestamente em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do STF, ou de Tribunal Superior. De outro giro, segundo o §1º do mesmo dispositivo, se a decisão recorrida estiver em manifesta desconformidade com súmula ou jurisprudência dominante do STF, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. Por fim, conforme artigo 543-C do CPC, “quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de Direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. §1º. Caberá ao Presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao STJ, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do STJ. §2º. Não adotada a providência descrita no §1º deste artigo, o relator no STJ, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida”.   
[3] Esse entendimento foi, igualmente, encampado por Alessandra Lopes Santana de Mello (2011, p.87), para quem a “tarefa criativa do juiz na busca do justo, tão festejada e colimada hodiernamente, não lhe autoriza incorrer em ‘decisionismos’ ou arbitrariedades, como se ele juiz, não integrasse um sistema que deve ser harmônico e coerente. A legitimidade de uma interpretação judicial decorre do emprego de uma fundamentação jurídica que possa ser generalizada aos casos equiparáveis, que tenha pretensão de universidade e leve em conta as consequências práticas que sua decisão produzirá no mundo dos fatos. [...] A efetividade do sistema jurídico depende da confiança dos jurisdicionados na função judicial e da capacidade dos cidadãos em entever os resultados das lides judiciais. Não basta conhecer o Direito legislado. Há que conhecer o Direito aplicado e, para tanto, deve haver a uniformidade da interpretação/aplicação das normas jurídicas” (grifos no original).