Partindo da premissa de que sua legitimidade decorre da exclusiva
proteção de bens jurídicos como princípio orientador, o Direito Penal se
desenvolveu nos séculos XIX e XX com a criação de estruturas analíticas
voltadas a garantir, em maior ou menor escala, essa almejada proteção.
Essas estruturas analíticas – tipicidade, antijuridicidade,
culpabilidade, crimes de dano e de perigo, crimes consumados e tentados, etc. –
encontram sua razão de ser não só pela garantia da segurança individual e
social através da proteção de bens jurídicos, mas também pela garantia de uma
segurança jurídica diante de arbítrios do Estado: no Direito Penal liberal o
indivíduo tem a garantia de que comportamentos não incriminados não serão
suscetíveis de intervenção estatal, bem como a garantia de que diante de um
comportamento incriminado a intervenção estatal apenas se dará nos estritos
limites da legislação penal.
Ocorre que esse Direito Penal de matriz liberal, surgido a partir do
programa político-filosófico do Iluminismo e desenvolvido no seio da sociedade
industrial, passa a ter sua eficácia questionada a partir do advento de uma
sociedade de risco. A pluralidade de novos riscos à vida social faz surgir um
discurso cada vez mais popular nos meios acadêmicos em favor da “modernização”
do Direito Penal a fim de torná-lo capaz de “enfrentar” esses novos riscos de
modo adequado e com isso garantir a segurança aos indivíduos e à sociedade:
para uma sociedade de risco, um Direito Penal da sociedade de risco.
Há um certo consenso na doutrina de que essa nova configuração do
sistema jurídico-penal se caracteriza precipuamente pela criação de novos tipos
penais, que ampliam a intervenção penal a âmbitos que tinham permanecido antes,
em maior ou menor medida, fora de seu alcance; ainda, também se caracteriza por
estabelecer novos desdobramentos para o alcance de alguns tipos penais
tradicionais e uma orientação geral em favor do incremento das penas. Essa
expansão do Direito Penal também implica no abandono de um Direito Penal que antes
reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado em
favor de um direito de gestão punitiva de riscos gerais, que se torna mais
próximo do Direito Administrativo Sancionador.
Ocorre que o citado fenômeno não se caracteriza apenas pela criação de
novos tipos penais, ou mesmo de novos modelos de imputação; há também uma clara
orientação no sentido de se abandonar, no todo ou em parte, alguns conceitos
essenciais ao Direito Penal de matriz liberal.
O novo Direito Penal que usualmente se propõe como consentâneo com a
sociedade de risco traz a possibilidade de ruptura com os princípios de
exclusiva proteção de bens jurídicos, de subsidiariedade e de ultima ratio
na medida em que os objetos protegidos pelos novos tipos penais, sobretudo os
econômicos e o ambiente, nem sempre se enquadram na condição de bens jurídicos
por não serem constituídos por uma realidade empírica perceptível e suscetível
de ser vinculada a interesses concretos das pessoas. As novas incriminações,
por vezes, buscam tutelar apenas "funções", instituições, modelos ou
objetivos relacionados à organização política, social ou econômica, e com isso
servem apenas como pretexto para uma ampliação das incriminações.
Além disso, o Direito Penal da sociedade de risco passa a privilegiar o
emprego de tipos de perigo abstrato (chegando até a admitir o perigo presumido
como fundamento válido para a tutela penal) em detrimento de tipos de lesão ou
de perigo concreto de bens jurídicos individuais, e com isso também se desvia dos
princípios de lesividade, de subsidiariedade e de ultima ratio, além de
atingir de modo reflexo os princípios de culpabilidade e de proporcionalidade.
Por fim, é de se reconhecer que o Direito Penal da sociedade de risco
assume um caráter primordialmente simbólico na medida em que os únicos fins
perseguidos pelo legislador através dos novos tipos penais seriam produzir na
sociedade e nos indivíduos o efeito meramente aparente – simbólico – de que com
a criminalização de comportamentos conectados a novos riscos fornece a solução
eficaz exigida, ou o efeito pedagógico ou educativo de que a população adquira
a consciência da necessidade de respeitar determinados valores.
A nosso ver, é de se repudiar o abandono de um conceito de bem jurídico
estruturado em bases liberais. A segurança é inegavelmente um ideal a ser
alcançado pelo funcionamento da sociedade e do sistema jurídico-penal, mas não
pode ser elevada à categoria de fim em si mesma tal como se propõe atualmente,
ainda que esse discurso seja camuflado por propostas modernizantes. O Direito
Penal pode e deve se ajustar a novas demandas sociais, bem como dispor de
instrumentos hábeis a lidar com novos riscos à vida social, mas sem perder de
vista as estruturas limitadoras do poder punitivo estatal que a muito custo
foram construídas.
Professor Tutor Leonardo Henriques da Silva