segunda-feira, 1 de setembro de 2014

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O CHAMADO "DIREITO PENAL DA SOCIEDADE DE RISCO"

Partindo da premissa de que sua legitimidade decorre da exclusiva proteção de bens jurídicos como princípio orientador, o Direito Penal se desenvolveu nos séculos XIX e XX com a criação de estruturas analíticas voltadas a garantir, em maior ou menor escala, essa almejada proteção.

Essas estruturas analíticas – tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade, crimes de dano e de perigo, crimes consumados e tentados, etc. – encontram sua razão de ser não só pela garantia da segurança individual e social através da proteção de bens jurídicos, mas também pela garantia de uma segurança jurídica diante de arbítrios do Estado: no Direito Penal liberal o indivíduo tem a garantia de que comportamentos não incriminados não serão suscetíveis de intervenção estatal, bem como a garantia de que diante de um comportamento incriminado a intervenção estatal apenas se dará nos estritos limites da legislação penal.

Ocorre que esse Direito Penal de matriz liberal, surgido a partir do programa político-filosófico do Iluminismo e desenvolvido no seio da sociedade industrial, passa a ter sua eficácia questionada a partir do advento de uma sociedade de risco. A pluralidade de novos riscos à vida social faz surgir um discurso cada vez mais popular nos meios acadêmicos em favor da “modernização” do Direito Penal a fim de torná-lo capaz de “enfrentar” esses novos riscos de modo adequado e com isso garantir a segurança aos indivíduos e à sociedade: para uma sociedade de risco, um Direito Penal da sociedade de risco.

Há um certo consenso na doutrina de que essa nova configuração do sistema jurídico-penal se caracteriza precipuamente pela criação de novos tipos penais, que ampliam a intervenção penal a âmbitos que tinham permanecido antes, em maior ou menor medida, fora de seu alcance; ainda, também se caracteriza por estabelecer novos desdobramentos para o alcance de alguns tipos penais tradicionais e uma orientação geral em favor do incremento das penas. Essa expansão do Direito Penal também implica no abandono de um Direito Penal que antes reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado em favor de um direito de gestão punitiva de riscos gerais, que se torna mais próximo do Direito Administrativo Sancionador.

Ocorre que o citado fenômeno não se caracteriza apenas pela criação de novos tipos penais, ou mesmo de novos modelos de imputação; há também uma clara orientação no sentido de se abandonar, no todo ou em parte, alguns conceitos essenciais ao Direito Penal de matriz liberal.

O novo Direito Penal que usualmente se propõe como consentâneo com a sociedade de risco traz a possibilidade de ruptura com os princípios de exclusiva proteção de bens jurídicos, de subsidiariedade e de ultima ratio na medida em que os objetos protegidos pelos novos tipos penais, sobretudo os econômicos e o ambiente, nem sempre se enquadram na condição de bens jurídicos por não serem constituídos por uma realidade empírica perceptível e suscetível de ser vinculada a interesses concretos das pessoas. As novas incriminações, por vezes, buscam tutelar apenas "funções", instituições, modelos ou objetivos relacionados à organização política, social ou econômica, e com isso servem apenas como pretexto para uma ampliação das incriminações.

Além disso, o Direito Penal da sociedade de risco passa a privilegiar o emprego de tipos de perigo abstrato (chegando até a admitir o perigo presumido como fundamento válido para a tutela penal) em detrimento de tipos de lesão ou de perigo concreto de bens jurídicos individuais, e com isso também se desvia dos princípios de lesividade, de subsidiariedade e de ultima ratio, além de atingir de modo reflexo os princípios de culpabilidade e de proporcionalidade.

Por fim, é de se reconhecer que o Direito Penal da sociedade de risco assume um caráter primordialmente simbólico na medida em que os únicos fins perseguidos pelo legislador através dos novos tipos penais seriam produzir na sociedade e nos indivíduos o efeito meramente aparente – simbólico – de que com a criminalização de comportamentos conectados a novos riscos fornece a solução eficaz exigida, ou o efeito pedagógico ou educativo de que a população adquira a consciência da necessidade de respeitar determinados valores.

A nosso ver, é de se repudiar o abandono de um conceito de bem jurídico estruturado em bases liberais. A segurança é inegavelmente um ideal a ser alcançado pelo funcionamento da sociedade e do sistema jurídico-penal, mas não pode ser elevada à categoria de fim em si mesma tal como se propõe atualmente, ainda que esse discurso seja camuflado por propostas modernizantes. O Direito Penal pode e deve se ajustar a novas demandas sociais, bem como dispor de instrumentos hábeis a lidar com novos riscos à vida social, mas sem perder de vista as estruturas limitadoras do poder punitivo estatal que a muito custo foram construídas.


Professor Tutor Leonardo Henriques da Silva