A
historiografia jurídica luso-brasileira contemporânea aponta, de modo
praticamente unânime, que o direito privado brasileiro teria permanecido mais
fiel à tradição do antigo direito lusitano que o próprio direito português. Um
dos aspectos demonstrativos deste fato seria a eficácia do contrato de compra e
venda, já que, no Brasil, manteve-se a distinção romana entre título e modo de aquisição, enquanto que Portugal teria seguido a inovação
jusracionalista de abolir a necessidade do ato material da tradição para transferência do direito real de propriedade[1].
Entretanto, antes da codificação do direito civil português, seria possível
verificar, de um e de outro lado do Oceano, esta diferença entre preservação e inovação?
Parece-nos
impossível afirmar que tenha havido, entre os juristas portugueses que
divulgaram suas obras entre o final do século XVIII e início do século XIX uma
decisiva adesão à inovação jusracionalista. Com exceção de Correa Telles no Digesto Português, não se vislumbra em outros autores a defesa do
consensualismo, embora a teoria fosse conhecida e debatida por Pascoal José de Melo Freire, Liz Teixeira e Manuel António Coelho da Rocha[2].
Esse
diagnóstico talvez não pudesse ser antevisto a partir da leitura de textos
historiográficos. Guilherme Braga da Cruz,
por exemplo, aduzia que
outro
ponto em que o direito brasileiro manteve sempre uma intransigência inflexível
e que o direito português logo cedeu, com o Código Civil, à novidade vinda de
França, foi o da insuficiência do acordo
de vontades para produzir a transferência de direitos reais. O Código Civil
brasileiro continua a consagrar a velha tradição romana, que sempre foi também
a tradição portuguêsa, de que o simples acôrdo de vontades, na compra e venda,
na doação, e em contratos congêneres, apenas tem efeitos obrigacionais, e não
pode, só por si, produzir a transferência da propriedade, para a qual é
necessário que ao contrato venha acrescentar-se a entrega, real ou simbólica,
da coisa que se pretende transferir. (...) O nosso Código Civil [português],
diversamente, dando realização aos intentos dos juristas da época, que e ahviam
deixado seguir pelo Código de Napoleão, consignaria
a doutrina contrária, despresando, assim, a tradição jurídica portuguêsa[3].
Não
há dúvida de que está correto o eminente historiador quando se tem em vista os
códigos sistematizados em Portugal e no Brasil. Entretanto, este distanciamento
no plano das fontes não tem, necessariamente, a mesma intensidade nos discursos
dos juristas que, reiteramos, mesmo conhecendo e debatendo o consensualismo,
não fazem sua apologia.
Se
bem atentarmos, também entre os juristas franceses da fase anterior à
codificação não houve adesão irrestrita ao consensualismo. Domat e Pothier
permaneceram afastados da doutrina inaugurada por Grócio e Pufendorf.
Os teóricos do direito civil franceses apenas se rendem à eficácia translativa
do contrato de compra e venda após a entrada em vigência do Code Civil.
Os
discursos dos juristas franceses da fase codificada tendem a indicar que a
modificação no sistema de transmissão da propriedade se deu em razão do próprio
código, abstendo-se da investigação sobre as origens da nova doutrina, mas sem
deixar de sublinhar sua diferença para o direito do antigo regime e para o direito romano. Este modo de proceder,
enfatizando a oposição entre o novo direito
e o velho direito, remete à imagem de
Napoleão, ostentada em alto-relevo em seu mausoléu, em que o imperador, com a
mão direita, rechaça o Droit Romain e,
com a mão esquerda, aponta o novo regramento representado pelo Code Napoléon, que traria justice éguale et intelligible pour tous.
Logo abaixo da imagem, lê-se, como se fossem palavras do próprio imperador, meu código por si só, por sua simplicidade,
fez mais bem em França que toda a massa de leis que me precederam. Ora, os
juristas da escola da exegese, que se seguiu à promulgação do Code, não fizeram mais que confirmar a
aspiração de superioridade do código sobre o direito antigo.
Um
movimento semelhante seguiu-se em Portugal. Mesmo com as oscilações
doutrinárias, o Código Civil de 1867 atribuiu efeito translativo ao consenso
por meio do artigo 715 e, especificamente em relação à compra e venda, pelo
artigo 1549. Em comentário ao código, José
Dias Ferreira afirmava que “nosso código seguiu abertamente a doutrina
do direito francez, dispensando a tradição para a validade da alienação, e considerando
transferida a posse com a transferência da propriedade”[4].
Assim, embora no campo da ciência do direito e da cultura jurídica o
consensualismo tivesse adesão restrita, o Código de Seabra atribuiu
expressamente eficácia real ao contrato de compra e venda.
No
Brasil, ao contrário de um código que adotasse a teoria jusracionalista,
tivemos as obras de José da Silva Lisboa e
Augusto Teixeira de Freitas, além
do próprio Código Comercial, que, refletindo as fontes de direito vigentes,
sistematizaram o direito privado marcando
o direito brasileiro como mais fiel à tradição romanística.
Nota-se,
com isso, que os debates sobre a figura jurídica objeto deste estudo vão além
de se cunhar o regramento mais ajustado à vida das pessoas; há, embutida nos
discursos, a tentativa de se destacar as marcas do ordenamento jurídico
nacional, aproximando-o ou afastando-o do novo
ou do velho, do que é concebido como
uma genuína tradição jurídica, ou como uma inovação tendente a tornar o direito
mais equitativo.
Professor Tutor Renato Sedano Onofri
[1] A este respeito, dispõe o artigo
1267 do Código Civil brasileiro que “a propriedade das coisas não se transfere
pelos negócios jurídicos antes da tradição”, deixando claro, com isso, que os
negócios jurídicos por si mesmos não irradiam eficácia real. Por sua vez,
Código Civil português arrola, no artigo
879º, que a compra e venda tem como efeito essencial “a transmissão da
propriedade da coisa ou da titularidade do direito (...)”, evidenciando-se,
assim, a aproximação teórica com a doutrina jusracionalista encabeçada por Grotius e Pufendorf e adotada, posteriormente, pelo Código Civil
francês de 1804.
[2] Confira-se, dos
autores indicados, as seguintes obras: Coelho
da Rocha, Manuel António. Instituições
de direito civil portuguez, 2 tomos, 3ª ed. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1852; Correa Telles,
José Homem. Digesto portuguez ou tratado
dos direitos e obrigações civis accomodado ás leis e costumes da nação
portugueza para servir de subsidio ao novo codigo civil, 3 tomos. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1835; Correa
Telles, José Homem . Doutrina das
acções. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918; Correa Telles, José Homem. Manual do tabellião. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1842; Liz Teixeira,
Antonio Ribeiro. Curso de direito civil
portuguez para o anno lectivo de 1843-1844 ou commentario às Instituições do
Sr. Paschoal José de Mello Freire sobre
o mesmo direito, tomo II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1845; Melo Freire, Pascoal José de. Instituições de direito civil português
(trad. port. Meneses, Miguel Pinto
de). Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, 1966. Disponível em < http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=76>,
último acesso 31/05/2014.
[3] Braga
da Cruz, Guilherme. A formação
histórica do moderno direito privado português e brasileiro, in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, vol. 50, 1955, pág. 70-71.
[4] Ferreira,
José Dias. Codigo civil portuguez
annotado, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1871, pág. 221.