quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Alguns apontamentos sobre a transmissão do direito real de propriedade por efeito do consenso na história do direito luso-brasileiro.

A historiografia jurídica luso-brasileira contemporânea aponta, de modo praticamente unânime, que o direito privado brasileiro teria permanecido mais fiel à tradição do antigo direito lusitano que o próprio direito português. Um dos aspectos demonstrativos deste fato seria a eficácia do contrato de compra e venda, já que, no Brasil, manteve-se a distinção romana entre título e modo de aquisição, enquanto que Portugal teria seguido a inovação jusracionalista de abolir a necessidade do ato material da tradição para transferência do direito real de propriedade[1]. Entretanto, antes da codificação do direito civil português, seria possível verificar, de um e de outro lado do Oceano, esta diferença entre preservação e inovação?
Parece-nos impossível afirmar que tenha havido, entre os juristas portugueses que divulgaram suas obras entre o final do século XVIII e início do século XIX uma decisiva adesão à inovação jusracionalista. Com exceção de Correa Telles no Digesto Português, não se vislumbra em outros autores a defesa do consensualismo, embora a teoria fosse conhecida e debatida por Pascoal José de Melo Freire, Liz Teixeira e Manuel António Coelho da Rocha[2].
Esse diagnóstico talvez não pudesse ser antevisto a partir da leitura de textos historiográficos. Guilherme Braga da Cruz, por exemplo, aduzia que

outro ponto em que o direito brasileiro manteve sempre uma intransigência inflexível e que o direito português logo cedeu, com o Código Civil, à novidade vinda de França, foi o  da insuficiência do acordo de vontades para produzir a transferência de direitos reais. O Código Civil brasileiro continua a consagrar a velha tradição romana, que sempre foi também a tradição portuguêsa, de que o simples acôrdo de vontades, na compra e venda, na doação, e em contratos congêneres, apenas tem efeitos obrigacionais, e não pode, só por si, produzir a transferência da propriedade, para a qual é necessário que ao contrato venha acrescentar-se a entrega, real ou simbólica, da coisa que se pretende transferir. (...) O nosso Código Civil [português], diversamente, dando realização aos intentos dos juristas da época, que e ahviam deixado seguir pelo Código de Napoleão, consignaria a doutrina contrária, despresando, assim, a tradição jurídica portuguêsa[3].

Não há dúvida de que está correto o eminente historiador quando se tem em vista os códigos sistematizados em Portugal e no Brasil. Entretanto, este distanciamento no plano das fontes não tem, necessariamente, a mesma intensidade nos discursos dos juristas que, reiteramos, mesmo conhecendo e debatendo o consensualismo, não fazem sua apologia.
Se bem atentarmos, também entre os juristas franceses da fase anterior à codificação não houve adesão irrestrita ao consensualismo. Domat e Pothier permaneceram afastados da doutrina inaugurada por Grócio e Pufendorf. Os teóricos do direito civil franceses apenas se rendem à eficácia translativa do contrato de compra e venda após a entrada em vigência do Code Civil.
Os discursos dos juristas franceses da fase codificada tendem a indicar que a modificação no sistema de transmissão da propriedade se deu em razão do próprio código, abstendo-se da investigação sobre as origens da nova doutrina, mas sem deixar de sublinhar sua diferença para o direito do antigo regime e para o direito romano. Este modo de proceder, enfatizando a oposição entre o novo direito e o velho direito, remete à imagem de Napoleão, ostentada em alto-relevo em seu mausoléu, em que o imperador, com a mão direita, rechaça o Droit Romain e, com a mão esquerda, aponta o novo regramento representado pelo Code Napoléon, que traria justice éguale et intelligible pour tous. Logo abaixo da imagem, lê-se, como se fossem palavras do próprio imperador, meu código por si só, por sua simplicidade, fez mais bem em França que toda a massa de leis que me precederam. Ora, os juristas da escola da exegese, que se seguiu à promulgação do Code, não fizeram mais que confirmar a aspiração de superioridade do código sobre o direito antigo.
Um movimento semelhante seguiu-se em Portugal. Mesmo com as oscilações doutrinárias, o Código Civil de 1867 atribuiu efeito translativo ao consenso por meio do artigo 715 e, especificamente em relação à compra e venda, pelo artigo 1549. Em comentário ao código, José Dias Ferreira afirmava que “nosso código seguiu abertamente a doutrina do direito francez, dispensando a tradição para a validade da alienação, e considerando transferida a posse com a transferência da propriedade”[4]. Assim, embora no campo da ciência do direito e da cultura jurídica o consensualismo tivesse adesão restrita, o Código de Seabra atribuiu expressamente eficácia real ao contrato de compra e venda.
No Brasil, ao contrário de um código que adotasse a teoria jusracionalista, tivemos as obras de José da Silva Lisboa e Augusto Teixeira de Freitas, além do próprio Código Comercial, que, refletindo as fontes de direito vigentes, sistematizaram o direito privado marcando o direito brasileiro como mais fiel à tradição romanística.
Nota-se, com isso, que os debates sobre a figura jurídica objeto deste estudo vão além de se cunhar o regramento mais ajustado à vida das pessoas; há, embutida nos discursos, a tentativa de se destacar as marcas do ordenamento jurídico nacional, aproximando-o ou afastando-o do novo ou do velho, do que é concebido como uma genuína tradição jurídica, ou como uma inovação tendente a tornar o direito mais equitativo. 
Professor Tutor Renato Sedano Onofri



[1] A este respeito, dispõe o artigo 1267 do Código Civil brasileiro que “a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”, deixando claro, com isso, que os negócios jurídicos por si mesmos não irradiam eficácia real. Por sua vez, Código Civil português arrola, no artigo  879º, que a compra e venda tem como efeito essencial “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito (...)”, evidenciando-se, assim, a aproximação teórica com a doutrina jusracionalista encabeçada por Grotius e Pufendorf e adotada, posteriormente, pelo Código Civil francês de 1804.
[2] Confira-se, dos autores indicados, as seguintes obras: Coelho da Rocha, Manuel António. Instituições de direito civil portuguez, 2 tomos, 3ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1852; Correa Telles, José Homem. Digesto portuguez ou tratado dos direitos e obrigações civis accomodado ás leis e costumes da nação portugueza para servir de subsidio ao novo codigo civil, 3 tomos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1835; Correa Telles, José Homem . Doutrina das acções. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918; Correa Telles, José Homem. Manual do tabellião. Lisboa: Imprensa Nacional, 1842; Liz Teixeira, Antonio Ribeiro. Curso de direito civil portuguez para o anno lectivo de 1843-1844 ou commentario às Instituições do Sr. Paschoal José de Mello Freire sobre o mesmo direito, tomo II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1845; Melo Freire, Pascoal José de. Instituições de direito civil português (trad. port. Meneses, Miguel Pinto de). Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, 1966. Disponível em < http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=76>, último acesso 31/05/2014.
[3] Braga da Cruz, Guilherme. A formação histórica do moderno direito privado português e brasileiro, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 50, 1955, pág. 70-71.
[4] Ferreira, José Dias. Codigo civil portuguez annotado, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1871, pág. 221.