terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Semântica de “propriedade” e de “direito de propriedade”

Muitos juristas e operadores do Direito se valem dos termos “propriedade” e “direito de propriedade” como sinônimos. No entanto, trata-se de expressões com significados diversos, ainda que exista associação entre as semânticas. 

Nas lições de Sílvio Luís Ferreira da Rocha, “propriedade” decorre do latim proprietas que por sua vez deriva de proprius e designa “o que pertence a uma pessoa”[1]. Propriedade denota a relação em que um bem está sujeito ao domínio de uma pessoa. O direito de propriedade, por sua vez, é uma face da propriedade, como reconhecida juridicamente.

Celso Antônio Bandeira de Mello, com lições de Lassale, enfrenta a questão da seguinte forma: “não se deve confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito de propriedade. Estes últimos são as expressões daquelas, porém como admitidas num dado sistema normativo”[2].

Portanto, a “propriedade” é entendida, ontologicamente, como relação de domínio do homem sobre a coisa, independentemente do ordenamento jurídico em que se insere, sendo esta noção ontológica de propriedade mais utilizada pelos juristas. Sem embargo, a expressão “propriedade” pode ser referente também ao bem objeto da propriedade, ou seja, à própria coisa que se domina.

Há, também, quem tenha uma visão ontológica diferenciada de propriedade que entenda ser a função social o principal delineamento de seu conceito. Para Duguit, a “propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza”[3].

Deixando a análise de “propriedade” e passando a análise de “direito de propriedade”, pode-se verificar que a noção ontológica do primeiro termo não se aplica à noção do segundo termo. Como ensina Kelsen, o direito de uma pessoa se contrapõe ao dever de outra, são os pólos de uma relação. Assim, o direito de propriedade refere-se a uma relação jurídica entre o proprietário, pessoa de direito, e as demais pessoas. Não se admite uma relação jurídica entre uma pessoa e uma coisa. Kelsen é claro:

Visto que o Direito, como ordem social, regula a conduta de indivíduos nas suas relações – imediatas ou mediatas – com outros indivíduos, também a propriedade só pode juridicamente constituir numa determinada relação de um indivíduo com outros indivíduos, a saber, no dever destes de não impedir aquele no exercício desse poder de disposição. Aquilo que se designa como poder exclusivo de uma pessoa sobre uma coisa é a exclusão de todos os outros [4].


Como relação jurídica, há de se ressaltar que “direito de propriedade” não se refere a uma noção ontológica. O direito é moldado pelo regime jurídico e só existe conforme reconhecido pelo sistema que o torna legítimo. Adilson Abreu Dallari explica:

“A propriedade, enquanto simples conceito, no campo das idéias, admite as mais diversas configurações. Já o direito de propriedade terá necessariamente a conformação que lhe for dada pelo sistema jurídico determinado no qual estiver inserido”[5].


Lúcia Valle Figueiredo, no mesmo sentido: “o direito de propriedade é o traçado pelo ordenamento constitucional vigente”[6], visto que a noção basilar do direito de propriedade varia conforme a estrutura político-econômica de um país, estrutura esta definida nas cartas constitucionais.

Celso Antônio Bandeira de Mello ensina:

O direito de propriedade – ou seja, o reconhecimento que a organização jurídica da Sociedade (Estado) dispensa aos poderes de alguém sobre coisas – encarta-se, ao nosso ver, no Direito Público e não no Direito Privado. É evidente que tal direito comporta relações tanto de Direito Público quanto de Direito Privado. Entretanto, o direito de propriedade, como aliás sempre sustentou o prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, é, essencialmente, um direito configurado no Direito Público e – desde logo – no Direito Constitucional[7].


Pode-se verificar que o direito de propriedade é garantido constitucionalmente, conforme se verifica no inciso XXII do artigo 5º e II do artigo 170. Da mesma forma, sobre o regime do direito de propriedade, incide o dever de cumprir função social, nos termos do inciso XXIII do artigo 5º e inciso III do artigo 170.
           
Enfim, para exemplificar a diferença entre “propriedade” e “direito de propriedade”, analisemos uma limitação administrativa que proíba o uso do imóvel para fins industriais. Essa limitação administrativa limita a “propriedade” (entendida aqui como a relação de domínio entre pessoa e coisa), visto que o proprietário não pode fazer todo e qualquer tipo de uso de seu imóvel. Por outro lado, a limitação administrativa não limita o “direito de propriedade”, porque o direito de uso da propriedade é justamente o plexo de poderes que o proprietário tem juridicamente garantido pelo ordenamento jurídico. Portanto a limitação administrativa não “limita” o “direito de propriedade”, mas dá seus contornos e estabelece as balizas do próprio direito.

Professor Tutor Ronaldo Gerd Seifert

BIBLIOGRAFIA:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, vol. 84. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 2006.
DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MUKAI, Toshio. Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004.
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005.



[1] ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 12.
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 768.
[3] MUKAI, Toshio. Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.19.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 138.
[5] DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 24.
[6] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25.
[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, vol. 84. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, p. 39.