A
interface entre o Direito Penal e outros ramos do Direito vem se mostrando uma
fonte inesgotável para pesquisas jurídicas. Destacam-se especialmente, nesse
particular, os estudos a respeito das relações entre Direito Penal e Direito
Tributário. Hoje veremos como dois institutos previstos no CTN – decadência e
prescrição – projetam seus efeitos em matéria penal.
Quando
o Estado não logra êxito em constituir o crédito tributário dentro de um
determinado prazo, fala-se na ocorrência da chamada decadência tributária,
definida por Paulo de Barros Carvalho como “o ato jurídico que faz perecer um
direito pelo seu não exercício durante certo lapso de tempo”, uma vez que “o
sistema positivo estipula certo período a fim de que os titulares de direitos
subjetivos realizem os atos necessários à sua preservação, e perante a inércia
manifestada pelo interessado, deixando fluir o tempo, fulmina a existência do
direito, decretando-lhe a extinção”[1].
Esses
prazos de constituição do crédito tributário se encontram previstos no Código
Tributário Nacional em seus art. 150, caput
e § 4º - para os tributos sujeitos a lançamento por homologação, nos quais
o sujeito passivo procede à atividade de identificação do fato gerador,
apuração e pagamento do quantum devido
sem a participação da Administração Fazendária - e art. 173 para os demais
tributos.
No
momento do vencimento do prazo estipulado para o pagamento do tributo surge
para a Administração Tributária o direito subjetivo de exigir do sujeito
passivo o cumprimento da obrigação tributária, direito esse que se traduz no
direito de propor demanda em Juízo com a finalidade de ver adimplido o crédito
tributário.
A
partir do momento da materialização da referida pretensão, caso o Estado não
exercite esse poder de demandar contra o sujeito passivo dentro de determinado
prazo haverá a extinção dessa pretensão, sendo a perda desse direito de ação
como conseqüência da inércia do Estado denominada prescrição tributária.
A
prescrição tributária, embora sem atingir a existência do crédito tributário,
acaba por torná-lo inoperante pela impossibilidade de se lhe obter adimplemento
de forma compulsória.
Ambos
os institutos são previstos pelo legislador como causas de extinção do crédito
tributário pelo art. 156, V, do CTN, a despeito da distinção conceitual e do
momento de incidência de um e de outro sobre a relação jurídica tributária:
Art. 156. Extinguem o
crédito tributário:
(...)
V - a prescrição e a
decadência;
Importante
averiguar em que medida os mesmos projetam efeitos em matéria penal tributária,
em especial quanto aos tipos penais do art. 1º, definidos pelo Supremo Tribunal
Federal como crimes materiais no julgamento do HC 81.611/DF e, posteriormente,
pela Súmula Vinculante 24.
Uma
vez que o tributo devido, suprimido ou reduzido de forma fraudulenta pelo
contribuinte, é considerado como elemento normativo do tipo penal do art. 1º da
Lei 8.137/90, uma vez ocorrida a decadência tributária temos que não há falar
em tipicidade penal justamente em face da exclusão do seu próprio elemento
normativo.
Inexistindo
tributo devido não há crime na forma do art. 1º da Lei 8137/90, vez que todas
as condutas ali previstas demandam a existência de um tributo devido como
substrato fático no qual se dá a conduta do agente. Nesse sentido, afirmam
Heloísa Estellita e Aldo de Paula Junior[2]:
Se o lançamento for anulado por norma
individual e concreta de decadência (criada em processo administrativo ou
judicial), o débito é extinto por nulidade na constituição da relação jurídica.
Na ausência do lançamento, diante do reconhecimento pelo credor do transcurso
do prazo decadencial, a questão se agrava porque, além da extinção do crédito (art.
156, V, do CTN), falta sua constituição, ou seja, falta a caracterização de um
dos elementos do tipo penal tributário: tributo como objeto de uma relação
jurídica. A norma individual e concreta da decadência atinge a validade do
lançamento, retirando-o do sistema do Direito Positivo. Conseqüentemente, os
reflexos penais desta retirada devem ser reconhecidos. Ora, se o tipo penal
tributário toma como elemento normativo do tipo o termo tributo, que só se
configura como objeto de uma relação jurídico-tributária convertida em
linguagem jurídica competente (lançamento), e tendo sido a conversão fulminada
pela decadência, é inviável a configuração do tipo penal tributário por
ausência de um de seus elementos.
Acolhendo
tal entendimento o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o instituto da
decadência tributária tem idoneidade de extinguir o crédito tributário e,
portanto, fulmina a justa causa para oferecimento da denúncia pela
impossibilidade de se configurar o crime de sonegação fiscal, caracterizando-se
como uma causa de exclusão da tipicidade do art.1º da Lei 8.137/90. Nesse
sentido: STJ – REsp nº 789.506/CE – Ministra Relatora Laurita Vaz. J. 25/04/06.
DJ 22/05/06; STJ – HC nº 56.799/SP – Ministra Relatora Laurita Vaz. J.
13/03/07. DJ 16/04/07; STJ – HC nº 77.986/MS – Ministro Relator Arnaldo Esteves
Lima. J. 13/09/07. DJ 07/04/08; STF – HC nº 84.555/RJ – Ministro Relator Cezar
Peluso. J. 07/08/07. DJ 14/09/07.
Em
relação ao instituto da prescrição tributária também há entendimento no
Superior Tribunal de Justiça favorável à sua aplicação em matéria penal para o
fim de excluir a tipicidade do crime do art. 1º da Lei 8137/90. Nesse sentido:
STJ – HC nº 86.864/CE – Ministro Relator Hamilton Carvalhido. J. 30/10/07. DJ
22/04/08.
E
mesmo anteriormente à edição da Súmula Vinculante 24 do STF a ocorrência da
prescrição tributária, segundo o STJ, era tida como impedimento até mesmo para
a instauração de inquérito policial para o fim de apurar eventual crime
tributário. Nesse sentido: STJ – HC nº 37.418/RJ – Ministra Relatora Maria
Theresa de Assis Moura. J. 27/03/07. DJ 30/04/07.
Quanto
ao momento de reconhecimento dos efeitos da decadência e da prescrição
tributárias em matéria penal, há que se distinguir duas situações:
a) quando o crédito tributário tem sua
constituição obstada pela decadência ou se vê extinto pela prescrição antes do
recebimento da denúncia, temos que a atipicidade da conduta para os fins do
art. 1º da Lei 8137/90 já se encontra manifesta e, portanto, eventual ação
penal se encontra desprovida de justa causa ab
initio;
b) por outro lado, caso a decadência ou a
prescrição se vejam reconhecidas após o recebimento da denúncia não há falar em
ausência de justa causa para a ação penal, posto que no momento da instauração
da ação penal o crédito tributário se encontrava constituído ao menos
aparentemente, mas é evidente que ambos os institutos assumem contorno de
questão prejudicial (art. 93, caput,
CPP) e a atipicidade deverá ser oportunamente declarada por sentença
absolutória.
Num
e noutro momento, portanto, o reconhecimento da atipicidade é inafastável.
Professor
Tutor Leonardo Henriques da Silva
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de
direito tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
p. 459.
[2] ESTELLITA, Heloísa; PAULA JUNIOR,
Aldo de. Os efeitos da decadência do crédito nos crimes contra a ordem
tributária In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André. Direito penal
tributário. São Paulo: MP, 2005. p. 26.